Lendas - Por Adelpho Monjardim (Introdução do livro)

Sobre as lendas e crendices do Espírito Santo, pouco se tem escrito, embora, vastíssimo, o campo se encontre aberto à curiosidade dos pesquisadores do fenômeno.
Duendes e assombrações foram sempre temas de gosto popular, assim como histórias de tesouros ocultos em subterrâneos, cavernas tenebrosas ou em velhas herdades.
Aqui as lendas são as de todo o Brasil, exceto aquelas exclusivas do extremo norte, tais corno a boiúna, uirapuru e outras.
O lobisomem é universal e muita gente boa acredita na sua existência. Certo reverendo, senhor de apreciável cultura, não só acreditava como aludia a um encontro com um deles, em uma noite enluarada, no caminho da sua fazenda, lá para as bandas do Jucu.
O saci-pererê, lenda aqui bem difundida, também não é prioridade nossa. Da simplória e rústica gente do campo ouvimos relatos de encontros com o ativo negrinho de uma perna só e solitário olho no meio da testa. O indefectível e fumegante cachimbo exige abastecimento contínuo e ai do infeliz que, no indesejável encontro, não lhe satisfaça a exigência. Algumas vítimas do pretenso encontro costumam exibir marcas das sevícias recebidas.
O caipora ou caapora, duende dos nossos indígenas, o das matas, portador da má sorte e causador de desgraças, é nosso conhecido, porém ausente do folclore capixaba. Possuía dois calcanhares em cada pé, de modo que não se podia saber qual a direção por ele tomada. Manso, quando jovem, com o tempo se ia tornando selvagem. As presas cresciam e o predador surgia pleno e terrível.
A mula-sem-cabeça pertence ao folclore geral, bem difundido entre nós. Em uma das suas interessantes histórias, descrevendo a mula, disse Paulo Setúbal ter a mesma uma estrela na testa. Cochilos de Homero.
O Boitatá, constante do folclore, é fenômeno da natureza ao qual o vulgo empresta caráter sobrenatural. É comum aos cemitérios, causado pela decomposição da matéria orgânica; sucedendo o mesmo às madeiras apodrecidas.
A Pata é outro abusão em curso, em nosso meio, nas camadas mais simples e as suas origens são idênticas às do lobisomem. Só vai acontecer com a sétima filha de um casal. Quando homem o sétimo filho vira lobisomem, o que cientificamente se denomina licantropia, metamorfose imaginária do homem em lobo ou cão. A crença foi introduzida no Brasil pelos portugueses. É lenda universalmente difundida e já mencionada por Heródoto, Plínio, o Velho, Plauto, Ovídio e outros.
Pouco a pouco os abusões e lendas se vão esbatendo no tempo à medida que a instrução se difunde em nosso meio, mormente no rural, mais sensível às crendices.
Sem dúvida o fantástico, o sobrenatural, exerce fascínio todo especial, mesmo entre as mentes mais arejadas. É forte a tendência de se buscar para as coisas mais simples uma explicação fantástica, extraterrena. É como que valorização da coisa, correção monetária à moeda da fantasia.
De todas as superstições a mais difundida é a do lobisomem. Conhecemos pessoas razoavelmente cultas que acreditam na sua existência e afirmam tê-lo visto. Contou-nos uma senhora, que certa noite, na antiga Vitória, aí por volta da meia-noite, ter sido despertada por latidos de cães, como se uma matilha perseguisse um animal qualquer. Desperta, distinguiu, perfeitamente, o ruído de uma corrente arrastada. Curiosa correu à janela. Temerosa de abri-la, espiou pela veneziana. O que viu fêz-la estremecer de horror. Monstruoso cão negro e peludo, grande como um novilho, olhos rubros e coruscantes como dois faróis, passava a rosnar e a babar alva saliva. Visão apocalíptica que jamais se apagou da sua memória. Arrastando a corrente o monstro enveredou-se por um beco próximo, seguido pela matilha que não o largava.
Hoje essas histórias permanecem, em nosso folclore, como patrimônio comum, pertinente a todas as nossas Províncias e ao mundo em geral, mas sem o mesmo crédito, graças à cultura que vem alcançando o povo. Nos sertões, nos povoados distantes, graças à influência da própria natureza, no ermo as sextas-feiras são consideradas perigosas, quando, para a imaginação exaltada do sertanejo, as forças do mal campeiam à solta.
Todavia, resistindo às idades, as histórias de assombrações e tesouros ocultos persistem com todo o vigor, arraigando-se, mais e mais, na mente humana. Quem não viu uma assombração? Quantos caçadores de tesouros conhecemos? À Companhia de Jesus cabe o maior acervo dessas histórias de fabulosos tesouros escondidos quando da sua expulsão por ordem de Pombal. Surpreendidos nada puderam levar. Daí a lenda. Se non è vero è ben trovato.
Superando todos os relatos, as lendas sobre tesouros ocultos e assombrações sugestionam e exaltam a imaginação do povo e não são poucos os seus caçadores.
Aqui, como na loura Albion, os duendes são obrigatórios nas velhas mansões, como um quê de nobreza e autenticidade. Tanto quanto nos permite a memória, vamos relatar alguns desses fatos, na impossibilidade de abrangê-los todos, tão rico é o manancial.
Fonte: O Espírito Santo na História, na Lenda e no Folclore, 1983
Autor: Adelpho Poli Monjardim
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2015
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