Onde o vento faz a curva - Por Beatriz Abaurre

Sempre tive uma relação que poderia considerar afetiva com o Penedo, aquela massa granítica imensa e poderosa que se ergue em toda a sua magnificência, bem na entrada do canal de águas pardacentas e remansosas, guardião eterno da bela cidade de Vitória.
Agreste, suas encostas não descem paralelas como muitas dessas formações geológicas. A face que encara o oceano que se faz distante, desce íngreme e abrupta - rocha pura que despenca até o mar que lambe distraído sua base. Em compensação, sua parte posterior desce brandamente até o porto com seus maquinários hostis: gruas, guindastes, navios cargueiros sem nenhuma poesia, correias de metal prenhes de minérios diversos, vindos de terras distantes.
Mas é da face agreste que eu gosto. Ao passar de carro pela Avenida Beira Mar, artéria aberta à força, construída de aterro furtado de seu território, onde escoa grande parte do fluxo de veículos da cidade, não consigo deixar de apreciar a pedra imponente. Imagino então que é ele o guardião de Vitória, a cidade cheia de luz e esplendor, a se estender até seus últimos vestígios, pois, da altura de seu pico, tudo está exposto: sua beleza ou desarmonia, sua ausência de belas edificações, e sua geografia tímida, espremida numa faixa de terra que se obriga a subir morro acima, casas amontoadas, equilibrando-se precariamente em sua humildade, escoradas umas nas outras, seus moradores sem sequer perceber a pedra imensa, que se ergue logo ali, do outro lado do canal que também ignoram por falta de tempo ou de curiosidade.
Certo dia, ao manobrar o carro para percorrer o caminho de sempre, olhei, como de hábito, a pedra que aprendi a amar, apesar de seu aspecto pouco amigável, uma espécie de excrecência crescia, incomodamente, a uma altura considerável, muito próximo de seu topo. Intrigada, passei a observar mais atentamente, aquela protuberância em sua superfície árida, que crescia dia após dia. Algumas semanas depois, uma vegetação verde recobria sua superfície. Não demorou e já se percebia um único galho esquálido a se erguer corajosamente do local tão inapropriado.
Não vai adiante, pensei. Não há terra naquela pedra seca e hostil.
Pois contra tudo, permaneceu crescendo e esverdecendo, tornando-se um arbusto meio deselegante, porém persistente. Sem pressa, esforçava-se bravamente tornava-se uma árvore que se desenvolvia comprida e estóica.
Minha curiosidade aumentou. Levava em consideração vários fatores desfavoráveis: terreno mais agreste, impossível; total falta de base plana para lançar raízes; o calor inclemente do sol, alimentado pela irradiação da pedra escura. E o mais importante, agarrava-se num local totalmente absurdo; exatamente onde o vento faz a curva ao varrer o canal, percorrendo, sem qualquer obstáculo a impedir seu ímpeto voluntarioso para, de repente, viver um embate incrível e inesperado com aquela massa rochosa a barrar, indiferente, seu caminho rumo ao desconhecido.
Nada mais havendo a fazer, só lhe restava desistir frustradamente, descrever uma curva fechada ao redor da face arredondada daquela massa bruta e retroceder, investir novamente, insistindo em seguir o rumo idealizado, mas tornando a fazer a curva, exatamente onde a árvore se agarrava estoicamente.
Nessa luta inclemente, venceu a minha árvore. Hoje, ergue-se frondosa, um vistoso espécime vegetal, digno de nossa admiração o tronco coberto de liquens sadios, uma quantidade imensa de plantas que se aconchegam em sua sombra farta e acolhedora e certamente, um abrigo seguro de pássaros diversos. Uma mãe afetuosa e terna, mansa e bela em sua dignidade imprevista.
Com sua brandura, quebrou o caráter carrancudo e vetusto do Penedo, dando-lhe um toque de afabilidade e alegria. Permaneço observando a rocha e principalmente o verde radiante daquele apêndice folhoso que, nem ele, nem o vento inclemente aceitaram com complacência ou boa vontade.
Hoje, me imagino sentada sob seus galhos frondosos, calma e pensativa, admirando, encantada, a cidade de Vitória, que amei à primeira vista, estendendo-se bela, iluminada em seu esplendor pela brandura do sol ao entardecer, preguiçosa como eu, sem pensar no amanhã incerto. O impoluto Penedo, a minha adorável árvore, o vento agora mais brando, fazendo insistentemente sua curva necessária, porém roçando cuidadosamente a superfície da pedra, a agitar levemente meus cabelos, e a cidade, cuja geografia hoje me encanta muito mais que outrora, assim, dolente, acolhedora como a árvore que hoje me aninha em sua sombra.
Vitória - Ilha do sol e da esperança
Vejo uma ave,
Gaivota.
E digo — não se vá.
Voa num céu cheio de cor
E penso — o mar está perto.
Vejo folhas caindo inquietas
E imagino — é o verão que se finda.
São tantas e nem sequer se queixam
E peço — não morram.
Há um tempo que foi, é certo
Mas há também, talvez, um amanhã
Porque ontem e hoje é tudo isto,
Este desejo de céu, de sol, de vento,
Este grito rouco cujo eco
Talvez nunca existiu,
Talvez nem mesmo o grito.
É este desejo de ser jovem
Desejo capaz de ser história,
De transportar fora do tempo
A renúncia e o cansaço de meu corpo insone.
É esta ilha —
Azul e branca,
Obstinada ilha
Trajetória de selvagens aves marinheiras,
De barcos que navegam apressados
Rumo ao Sul, ao esquecimento.
É esta ilha assim, rude, que sabe a esperança
Onde há lágrimas secadas pelo vento
E sorrisos
Alvos sorrisos com sabor de maresia;
Terra sofrida cheia de luz e de coragem.
Vejo uma ave,
Gaivota.
E grito — volta
E penso — talvez não se vá
Mas sempre se vai
Vôo alongado, solitário,
Sobre a terra, sobre o mar,
Sobre o abismo,
Sobre o planalto distante, infinito,
Sobre o tempo que não acaba de passar...
Fonte: Vitória, Cidade Sol – Escritos de Vitória nº 25, Academia Espírito-Santense de Letras e Secretaria Municipal de Cultura, 2008
Autora do texto: Beatriz Abaurre, nasceu em Londrina, PR, em 1937. Musicista, poeta, prosadora e ensaísta. Pertence à AFEL e à AEL
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2019
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