Saint-Hilaire nos “Passos de Anchieta”, em 1818
Quando cheguei diante de Benevente, que se situa na margem setentrional do pequeno rio do mesmo nome, veio buscar-me uma piroga conduzida por um negro. Embarquei com Prégent, o botocudo Firmiano e parte de minha bagagem. A piroga estava carregada, o vento soprava forte, a maré nos arrastava e o canoeiro era inexperiente. Confesso que não pude evitar algum temor; chegamos, entretanto, sem qualquer incidente.
Indaguei de umas pessoas que vi na praia onde poderia passar a noite e foram concordes em dizer-me que só acharia pouso no velho Convento dos Jesuítas. Ficando esse edifício a certa distância do rio, somente meus burros podiam levar lá a minha bagagem e foi mister que atravessassem a água para eu me instalar. Houve a tal respeito, não sei quantas controvérsias inúteis. Por fim, os burros passaram o rio a nado, um após outro, seguros pelas rédeas, por um ou dois homens que estavam na piroga. Correram mais ou menos 2 horas para que chegasse à margem esquerda do Benevente toda a minha caravana, e, durante esse tempo, tive de ficar na praia, com meus objetos expostos ao sol mais ardente. Sendo precisamente aquele dia um domingo e além do mais, festa do Rosário, uma multidão de toda a vizinhança havia chegado à vila.
Tão logo desembarquei, fez-se um círculo à nossa roda e, a cada instante, mais aumentava a gente. Índios civilizados, negros, luso-brasileiros, todos nos olhavam quase mudos, com jeito estranho e estupidificado. Mas era principalmente Firmiano quem atraía o olhar dos curiosos; suas orelhas e seu lábio superior furados comprovavam sua origem e, sendo o nome de seu povo aqui execrado, dirigiam-lhe as mais injuriosas invectivas. O pobre rapaz, confundido e perturbado, baixava os olhos sem proferir sequer uma palavra e escondia o rosto nas mãos. Afinal, esgotou-se minha paciência: disse aos presentes as verdades mais duras e repreendi sua desconsideração, crueldade e estupidez. Fui calmamente ouvido; nada me responderam; mas, ninguém pensou em retirar-se. Em honra da festa, todos os índios estavam mais ou menos embriagados e um deles, que provavelmente seguia conselho dos demais, veio gritar em meus ouvidos que um botocudo não devia aparecer nesta região, senão para ser preso, acrescentando que ia comunicar o que se passava ao comandante da milícia. Prégent respondeu a esse homem com certa rudeza e pôs os curiosos a seu favor. Não sei se o índio cumpriu a ameaça que fizera, mas, poucos momentos após a breve cena, cuja narração acabo de fazer, apareceu o comandante e pediu para ver meu passaporte; quando o leu, prodigalizou-me gentilezas e pôs fim a meus aborrecimentos, fazendo preparar no antigo mosteiro o alojamento reservado aos viajantes. Logo depois o cura veio ver-me e mandou-me em seguida provisões com uma garrafa de bom vinho de Alicante. Livre dos importunos, pude, afinal, passear em Benevente e examinar sua situação.
Das montanhas que se avistam a distância, do lado noroeste, desce um riacho que logo depois da embocadura se dirige bruscamente no rumo do oeste.
No ângulo formado por essa curva é que se ergue a cidade de Benevente, também chamada Vila Nova, ou Vila Nova de Benevente. Compõe-se de cerca de 100 casas, umas cobertas de telhas e outras de palha, muitas das quais têm um andar além do térreo.
Em torno do grupo principal de casas, que é o mais próximo do riacho e apresenta uma espécie de triângulo, o terreno se eleva, formando rápido declive onde a rocha se mostra nua. Esse declive termina numa plataforma muito larga, que domina não apenas a campina, como ainda o mar; e lá se acham o antigo convento dos Jesuítas e sua igreja, hoje a paróquia de todos os fiéis do distrito. A entrada desta última defronta o Oceano; o convento se apóia de encontro ao lado meridional do edifício e uma larga via, formada por cabanas confina-se no lado setentrional.
Sem ser muito ornada, essa igreja é, contudo, notável por sua imponência e especialmente por ter dois rebordos, gênero de construção do qual os templos brasileiros apresentavam poucos exemplares. O antigo convento tem um andar, ao qual se sobe por uma escadaria externa e forma o 3° lado do mosteiro, do qual a igreja é o 4°.
O mais aprazível panorama se oferece aos olhos de quem se coloca diante de alguma das janelas do claustro; avistam-se a um só tempo o rio, a mata majestosa que o margeia, sua embocadura, o oceano, a cidade de Benevente e os campos das cercanias. Benevente, outrora conhecida pelo nome de Aldeia de Reritiba era uma das quatro reduções (vilas de índios fundadas por jesuítas) que se achavam compreendidas na Província do Espírito Santo. Os jesuítas lançaram as bases desta Aldeia logo após sua chegada ao Brasil. Ali reuniram número muito considerável de índios; instalaram uma hospedaria para os viajantes de sua Ordem e Reritiba foi o principal teatro dos generosos trabalhos do Padre Anchieta.
Em 1716, a antiga redução foi erigida em Vila, sob o nome de Benevente e, em 1795, tornou-se cabeça de comarca de uma paróquia independente.
Após extinta a Companhia de Jesus, o governo apoderou-se do mosteiro; parte do edifício serve hoje de alojamento ao cura; o resto se tem consagrado a muitas destinações diferentes; fizeram ali uma prisão; dispuseram de uma sala para a câmara; em outro aposento o Ouvidor dá audiências quando vem cumprir suas funções de corregedor; por fim, tiveram a generosidade de reservar um quarto para cedê-lo aos estrangeiros honestos que passam pela região.
Quando expulsou os jesuítas, a Administração destinou aos índios civilizados de Benevente uma área inalienável de seis léguas por outras tantas, mas, sendo fértil o lugar, os governadores logo deram aos seus amigos partes dessas terras, sem considerar o direito dos indígenas, que reclamaram inutilmente. Entretanto, para poder comprar aguardente, muitos índios cederam suas propriedades aos brancos, os quais, para se garantirem no gozo do valor declarado inalienável, se comprometeram a pagar pequena retribuição à Municipalidade de Benevente.
Outros indígenas, ao deixar a região, não fizeram venda alguma e portugueses tomaram, pura e simplesmente, posse de suas terras. Contudo, hoje se dão sesmarias em todo o distrito, sem sequer exigir aforamento para a Câmara; o Ouvidor da Vila da Vitória tem o título honorífico de conservador das possessões dos índios de Benevente, mas, na realidade, nada mais tem a conservar.
As mencionadas terras têm passado, quase todas, pelas mãos dos luso-brasileiros, e os índios se comprazem em cultivar campos que deveriam semear para si mesmos.
Quando o índio pede justiça contra o português, como poderá obtê-la? É aos amigos e patrícios de seus adversários que ele é obrigado a dirigir-se, já que os Juízes ordinários de Benevente são exclusivamente portugueses. E, ainda, como as queixas de uma raça de homens pobres e sem apoio chegarão até aos magistrados superiores, a tão grande distância desses infelizes e, na maioria das vezes, surdos à voz dos que se apresentam de mãos vazias?
Pouco antes de minha viagem, haviam sido, como disse mais acima, abertas novas estradas na Província do Espírito Santo; lançaram-se as fundações de nova vila, a de Viana, e os índios eram empregados nos diversos trabalhos.
Tirava-se de Benevente (1818) certo número deles, revezados de três em três meses; eram mandados a trabalhar bem longe de sua habitação; alimentavam-se mal e, ao cabo do trimestre, só lhes davam 4 mil-réis, mesmo assim sem regularidade. O temor dessas explorações ilegais espantou grande número deles e sendo, principalmente homens que abandonam a região, sem encontrar mulheres, em outra parte, ficaram perdidos para a população.
Não é de estranhar que as terras de Benevente sejam muito procuradas pelos luso-brasileiros, pois em geral são de muito boa qualidade e se prestam igualmente ao arroz, ao algodão, ao feijão, à cana e à mandioca; esta, ao cabo de seis meses, apresenta raízes no ponto de se arrancar.
Os colonos não colhem apenas o açúcar, que remetem para o Rio de Janeiro, mas também outros produtos da região, com abundância que dá para serem despachados à capital. A vizinhança do oceano e do rio favorece singularmente os agricultores do local.
A terra que limita o Rio Benevente ao norte, ultrapassa a embocadura e forma no oceano um cabo muito grande e meio circular, que oferece abrigo às embarcações. A entrada do rio tem 10 a 12 pés de profundidade; não opõe ao navegante qualquer dificuldade e dá passagem às maiores sumacas. Parece que não se conhecem as nascentes do Benevente, mas, com pirogas, pode-se subí-lo por uma extensão de 4 a 5 léguas.
Os pequenos navios que habitualmente transportam ao Rio de Janeiro os gêneros da região são em número de quatro ou cinco, e além desses, de tempos a tempos, outros vêm pelo rio, fretados por negociantes da Bahia e da Capital. Esses negociantes, ou seus comissários, vão à casa dos colonos adiantar-lhes algum dinheiro e contratar certa quantidade de gêneros, que depois mandam transportar.
Não é sempre em numerário que se fazem as compras; nada raro, é que os negociantes forneçam mercadorias em troca dos produtos da região. Vende-se comumente, por uma pataca e meia a duas, o alqueire de arroz em casca, por duas patacas o alqueire de milho, por duas a três, o de farinha de mandioca. O algodão, que durante muito tempo se vendia por duas patacas a arroba, ao tempo de minha viagem foi elevado para três patacas, por compradores estrangeiros.
O que atrasa o progresso da agricultura é o medo aos botocudos, que há 25 ou 30 anos (escrito em 1818) vêm causando danos no território deste distrito.
Esses índios fizeram com que fossem abandonadas as margens de mais de um dos afluentes do Rio Benevente e por causa deles, não é possível afastar-se muito do litoral.
Desde contudo, que se instalou um destacamento militar às margens muito férteis do Riacho de Iconha, os agricultores começaram a estabelecer-se ali.
Depois de ter deixado Benevente, caminhei a princípio pela praia; passeio muitas vezes pela floresta e desta para aquela e, tendo percorrido 31/2 léguas em região montanhosa, pontilhada de cabanas, cheguei à Aldeia de Meiaipe, dependente da paróquia de Guarapari e situada à margem de uma enseada; ao norte desta aparece muito considerável grupo de casinhas; além, há outeiros cobertos de mato e diante da aldeia, no mar, surgem recifes negros quase à flor da água. Apesar de os habitantes de Meiaipe se jactarem de ser brancos, reconhece-se logo, sem custo, que a maior parte nem por mistura pertence à raça européia. Não têm, na verdade, os olhos diferentes e a cor fuliginosa dos indígenas; mas, é de observar que esses caracteres se perdem, quase sempre, pela preponderância dos brancos e dos índios; aliás, os colonos de Meiaipe têm o peito largo e os ombros sem saliência, como os americanos; sua cabeça é mais volumosa que a dos verdadeiros portugueses, e os ossos da maçã do rosto são mais proeminentes que nos europeus; por fim, a brancura de sua pele tem algo de embaçado e pálido que não se nota nos homens que pertencem inteiramente à raça caucá-sica. Os habitantes de Meiaipe cultivam um pouco a terra, mas, vivem, principalmente, da pesca, muita abundante neste distrito; secam os peixes que apanham e pequenas embarcações vêm de Vitória e de São Salvador dos Campos dos Goitacases para comprá-los. Após deixar Meiaipe, atravessei, ligeiramente, um terreno de areia, com vegetação muito interessante, que se assemelha à das restingas de Saquarema, de Cabo Frio, etc.
Tão logo alcancei a praia e depois dela me afastei um pouco, cheguei a Guarapari. Essa pequena vila foi, na origem, uma das quatro reduções que os jesuítas fundaram na Província do Espírito Santo e o célebre José de Anchieta ali fez, como em Benevente, triunfar seu zelo pela civilização e pelo bem-estar dos índios.
Parece que ao tempo da Companhia de Jesus já os brancos haviam penetrado em Guarapari, pois, desde o ano de 1689, o lugar recebeu o título de Vila e, na mesma época, fundou-se ali uma espécie de paróquia.
É-nos impossível dizer qual, sob a administração dos jesuítas, era a população deste distrito; tudo quanto sabemos é que hoje se contam, no meio da jurisdição clerical, mais de 300 casas e mais de 2.400 adultos.
A Vila de Guarapari foi construída em situação muito pitoresca, na foz do rio do mesmo nome; mas, em lugar de estender-se pela margem do rio, com ele se confinou perpendicularmente; e só se pode alcançar a praia depois de atravessar a cidade em toda a sua extensão. A rua pela qual cheguei ao Rio Guarapari é bastante larga e ladeada de casas mal conservadas, na maioria, cobertas de telhas. Diante das portas e das janelas de sacadas há, costumeiramente, uma espécie de tela muito fina, que substitui as venezianas e se assemelha à empregada em muitas partes do Brasil para fazer peneiras. Não se cuidou de calçar a rua de que acabo de falar e nela, como em Cabo Frio, cresce um gramado muito fino, de bonito efeito. Uma colina coberta de mato e coroada pelo antigo Convento dos Jesuítas, parte da vila e se atira diante da embocadura do rio. Este, que em face da rua principal apenas tem a largura de nossas ribeiras de terceira ou quarta ordem, arroja-se diante da pequena baía, distando cerca de um tiro de fuzil das últimas casas.
À margem do Rio Guarapari oposta à cidade, isto é, à margem esquerda ou setentrional, erguem-se alguns rochedos negros; uma planície coberta de arbustos e espinhos se estende atrás; vê-se, do lado do setentrião, na margem da pequena baía em que se lança a ribeira, uma fila de cabanas a formar um semicírculo sendo o horizonte limitado por montanhas.
A Vila de Guarapari tem muito mais importância do que Itapemirim e Benevente, pelo seu comércio. Seus habitantes em geral são pobres e têm poucos escravos. As canas que suas terras produzem apenas podem ser empregadas para fazer aguar-dente e não colhem algodão, arroz, feijão e mandioca, em abundância para entreter comércio regular com a Capital. De vez em quando, negociantes da Bahia ou do Rio de Janeiro entram no Guarapari com pequenas embarcações e compram dos agricultores os gêneros excedentes do consumo da região, mas esse comércio se realiza com extrema morosidade.
Ao tempo de minha viagem, uma embarcação que havia chegado da Bahia para levar farinha já se achava desde 3 meses no porto de Guarapari sem ter podido completar seu carregamento.
Deixando Guarapari, atravessei o rio. Usa-se uma piroga para transportar os homens de uma a outra margem e são obrigados os cavalos e as bestas, em suma, a atravessar a água nadando. A portagem está a cargo do fisco. Tão logo me vi do outro lado do rio, cruzei a planície que já havia avistado quando ainda na vila. Mostra ela uma superfície arenosa e apresenta vegetação, que eu havia observado, semelhante à das várias restingas que eu percorrera até então. Do outro lado dessa planície entrei numa floresta e, daí a pouco, cheguei a Perocão, lugar que tirou seu nome de uma ribeira cujas águas correm na vizinhança. A casa onde fiz parada tem pouca importância. Mas sua situação é muito pitoresca. Essa casa foi construída no cimo de pequena montanha que domina uma enseada bastante larga e de onde também se avista o alto mar. Ao redor da habitação há terrenos cultivados e algumas casas de negros.
Ao pé da colina vi o vale que rega o Perocão; florestas imensas se estendem do lado oeste e, à distância, se percebem as altas montanhas.
Alojou-me o proprietário do Perocão, numa casa de negros, não era esta, uma estalagem muito distinta, mas, ao menos, eu poderia trabalhar com mais liberdade que na casa do próprio senhor. Esse homem tratou-me logo muito cavalheirescamente, mas, quando eu lhe disse que estava ali na qualidade de enviado especial (homem encarregado pelo Rei, de uma Missão) , assumiu atitudes de profundo respeito, imediatamente. Os brasileiros, em certa época tinham tal veneração por seu soberano que a palavra mandado atuava como um talismã para a maioria.
Depois de haver deixado meu hospedeiro, atravessei o Perocão, que se lança pouco abaixo no oceano. A cerca de 1/4 de légua dessa ribeira, encontrei outra, igualmente pequena, a de Una (ribeira negra) junto à qual se acham cabanas muito mal conservadas. Entrei numa delas e vi sal branco como a neve. Esse magnífico sal se forma, por evaporação natural, em buracos onde o mar deixa a água depois das marés altas, e os habitantes da região cuidam de recolhê-lo.
Da mesma forma que o Rio Perocão, a Ribeira de Una se transpõe por uma ponte. Mais longe, atravessei terrenos arenosos, nos quais a vegetação é a das restingas; rodeei os pântanos e afinal me vi de novo às margens do mar, da qual me havia distanciado por certo tempo. Aqui a praia arenosa e despida de vegetação é mais extensa que em todas as outras partes em que eu havia acompanhado o rio, mas, para além da praia, o terreno é mais elevado. A quatro léguas de Perocão, detive-me numa aldeia de cabanas esparsas, edificadas no pequeno promontório chamado Ponta da Fruta. A casa, em que passei a noite, situa-se numa altura em que, excetuado o mês de março, durante quase todo o ano o vento se faz sentir violentamente.
Desde os arredores de Guarapari à Ponta da Fruta, as terras são menos produtivas que na vizinhança de Itapemirim e mais ao sul. Aqui, as grandes formigas afligem os agricultores, por seus estragos, bem mais que em Itapemirim e em Campos, pois os terrenos áridos não opõem a esses insetos os obstáculos que eles encontram nos lugares úmidos, quando desejam fazer seus ninhos.
Entre a Ponta da Fruta e o Sítio de Santinhos vê-se a Baía do Espírito Santo; o caminho, numa distância de 41/2 léguas, não costeia o mar; não se distancia, porém, de maneira tal que o viajante não possa, freqüentemente, ouvir ainda o troar das vagas.
Atravessa-se sempre terreno plano, que ora mostra charcos, ora pastagens, ora capões, ora vegetação análoga à das restingas.
Pouco mais ou menos a meio caminho, encontrei a Ribeira do Jecú(Jucú), perto da qual estão espalhadas algumas choupanas. Passa-se sobre esse pequeno rio por uma ponte de madeira, cuja entrada é fechada por uma grande porta, ao passar a qual, é exigida tributo.
O Jecú se lança no Oceano, pouco abaixo da ponte, mas sua embocadura tem pequena profundidade para dar entrada a outros barcos além de pirogas. Esta circunstância havia decidido os jesuítas, possuidores de três fazendas situadas à margem do Jecu, a cavarem um canal que, comunicando a ribeira à Baía do Espírito Santo, pusesse os gêneros alimentícios ao abrigo dos riscos que corriam ao ser transportados em canoas, por mar. Já tive ocasião de fazer referência a esse canal, noutra parte, o único existente, que eu saiba, em todo o Brasil meridional, com o de Capitinga, perto de Paracatu, e o das forjas de Gaspar Soares.
Para além do Jecu, entrei num bosque e depois cheguei a vasto campo, onde se poderia criar muito gado. O horizonte é limitado, a oeste, por outeiros, que sem dúvida fazem parte da cadeia marítima; num plano menos distante vêem-se montanhas, entre as quais é possível distinguir uma de forma cônica, que tem o cume coroado pelo famoso Convento de Nossa Senhora da Penha...
Havendo atravessado a pastaria do Jecú, cheguei a um terreno extremamente arenoso, coberto de moitas pequenas e juntas, que em seu todo mostram o aspecto dos carrascais de Minas Novas.
Não só pela aparência, porém, é que a vegetação deste sítio se aproxima da de certas partes de Minas Gerais. Achei aí plantas que já havia colhido nesta última província e posso até dizer, em geral, que as espécies de restingas da costa são a miúdo as mesmas que crescem nos planaltos úmidos e arenosos de Minas, e não podem ser tidas de outro modo senão como pertencentes aos mesmos gêneros. Isto concorre para provar que a elevação do solo, quando não é extremamente considerável, contribui menos que as variações do terreno para provocar diferenças na vegetação.
Tendo continuado meu caminho cheguei a um campo onde não achei vestígios de homem ou de cavalos; pensei haver-me transviado e voltei; entretanto, logo soube pelos habitantes de uma colônia vizinha que não havia errado o caminho, como pensara. Estava então a ponto de chegar à Vila da Vitória; mas, nessa região, viaja-se tão raramente por terra que, por assim dizer, o único caminho que leva às portas da Capital desaparece inteiramente sob as ervas que o cobrem.
Subi logo a uma colina coberta de grama e encontrei no alto uma humilde choupana. Dali divisei grande parte da Baía do Espírito Santo. Vi o canal pelo qual chegam a ela as embarcações e que se acha limitado ao norte pelo Monte Moreno e ao sul pela pequena Ilha do Boi. Sucediam-se diante de mim os contornos irregulares da baía, circundada de colinas e montes.
Nessas elevações de bem variadas formas, notei sucessivamente, grandes florestas, verdes pastagens, campos cultivados e magros terrenos que nada ofereciam além de espinhos.
Entre todas essas montanhas, seria impossível deixar de notar a de Jucutacoara que termina por um rochedo nu, arredondado no topo e cilíndrico. Surgia, ao norte entre os montes, em plano afastado, o Pico de Mestre Alvo, distante de 8 a 9 léguas. Voltando de novo a atenção para a baía, agradava-me contemplar as ilhas que a semeiam e que entre si pouco se assemelham em extensão e forma. Ao pé da colina de cujo cimo admirava esse magnífico panorama, vi as águas do Aribiri juntarem-se às da baía, após haverem serpeado na pradaria. A Vila da Vitória estava escondida, por fim; entretanto, algumas cabanas apareciam aqui e ali sobre os morros e a visão da bela residência de Jucutacoara tornava menos austera a das montanhas vizinhas.
Nas partes do Brasil em que se viaja por terra, quem chega às cidades experimenta as maiores dificuldades para encontrar alojamento e sobretudo para guardar os animais.
É natural crer que eu tinha experimentado algum embaraço ao chegar perto da Capital do Espírito Santo. Não se havia organizado travessia regular entre a Vila da Vitória, situada numa ilha, e a extremidade do caminho em que eu então me achava.
Vi apenas uma piroga embaixo da colina de cujo topo contemplara a Baía do Espírito Santo e essa piroga estava presa a correntes, com cadeado. Felizmente, o homem que me havia mostrado o caminho quando eu supusera tê-lo errado disse-me que possuía uma barca e consegui que a trouxesse; chegou pouco depois e informou-me que o Capitão-Mor da Vila da Vitória, para quem eu levava carta de recomendação, era o proprietário da grande habitação de Jucutacoara, de que acima falei e que vira ao longe, do alto da colina. Deixando em terra minhas bagagens e conduções, entrei na canoa com o novo guia, para ir à casa do Capitão-Mor. Logo avistei a Vila da Vitória e não demorei a chegar ao outro lado da água. Ao desembarcar, não pude deixar de dispensar alguma atenção aos manguezais que crescem no litoral. Os ramos de algumas plantas não caem para enraizar-se no solo; contudo, a uma altura de cerca de 8 a 10 pés acima da lama, o tronco dá nascimento a raízes que vão procurar o chão e a árvore parece sustentar-se no ar sobre espécies de cordas, obliquamente estendidas. Suponho que essa vegetação singular se deva à umidade com que o mar nutre os troncos, porque as raízes começam no ponto atingido pela água nas marés altas.
A habitação de Jucutacoara, para a qual me dirigira, estava construída na localização mais agradável. Era grande, regular; e erguia-se a meia encosta sobre o monte coberto de erva rasteira. Em frente à casa estende-se um vale cortado por um regato ladeado por montanhas cobertas de mato, a mais notável das quais era a que dá nome à própria habitação.
Grandes rochedos estão dispersos pelo vale. Um engenho e choupanas de negros foram construídas à direita e à esquerda, abaixo da residência do dono. Na extremidade do vale, havia uma plantação de cana-de-açúcar, no meio da qual a vista pousa sobre um grupo de elegantes palmeiras; vêm a seguir os mangues; mais adiante, divisa-se parte da baía e, além, algumas montanhas que a limitam ao sul.
O rochedo de Jucutacoara, realmente, não é cilíndrico como me havia parecido quando o avistei do alto da colina em cujo cimo havia admirado, pela primeira vez, a Baía do Espírito Santo. Ao norte esse rochedo é cortado a pique, mas, para o sul atira-se num declive acentuado e do lado leste mostra dois amplos buracos arredondados; neles não se tem entrado e, dizem, receberam dos índios o nome que hoje têm.
O proprietário da habitação que acabo de dar a conhecer, o Capitão-mor Francisco Pinto, recebeu-me muito bem e prometeu alojar-me em sua casa. Sendo já tarde, porém, combinamos que só me mandaria uma barca na manhã do dia seguinte para transportar minha gente e minhas bagagens e que, voltando, eu passaria a noite no lugar chamado Sítio de Santinhos. Notei que o proprietário desse sítio, que apenas possuía um reduto muito pequeno, se achava pouco disposto a acolher-me; contudo, acabou por decidir-se a isso mas fez-me pagar sua tardia complacência, aborrecendo-me, durante meu trabalho, com inesgotável tagarelice. Esse homem revelou-me seu ódio implacável aos botocudos, sentimento partilhado, aliás, pela maioria de seus patrícios e, talvez, por todos.
Os botocudos, disse-me o anfitrião, em meio de suas fastidiosas parlendas, são como os franceses, só gostam da guerra.
Surpreendi o pobre homem declarando o país em que nasci e ele apressou-se em retratar-se.
No dia seguinte pela manhã, (10 de outubro de 1818) o Capitão-mor, como me prometera, mandou-me uma barca até o Sítio de Santinhos. Minha bagagem foi transportada para o outro lado da baía e meus burros a atravessaram a nado, fazendo parada numa ponta de terra. Naquele dia e no anterior o calor foi intenso e sofri muito dos nervos. Sentia necessidade de ter rostos sorridentes diante dos olhos, de poder entregar-me, por vezes, a manifestações de confiança e de amizade, e estava reduzido ao triste convívio do pobre Prégent, cujo humor e saúde cada dia mais se alteravam.
Obstinara-me em querer ir ao Rio Doce, mas não posso pensar nessa viagem sem estremecer.
Notas
1. A obra "Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce", de Auguste de Saint-Hilaire foi originalmente publicada em Paris, em 1833, formando os Capítulos VII a XV de "Voyage dans le District des Diamans et sur le Littoral du Brésil"
2. Veio Saint-Hilaire ao nosso País, por influência do Conde de Luxemburgo, em 1816, aqui permanecendo até 1822. Viajou, durante sua estada entre nós, pelos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Em suas viagens colecionou, amplamente, material botânico e zoológico principalmente; e fez inúmeras observações de valor para a Geografia, a História e a Etnografia.
Fonte: Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce ano 1974
Autor: Auguste de Saint-Hilaire
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2015
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