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O Mestre Alvo, Vila de Almeida e os índios – Por Saint-Hilaire

Nova Almeida, 1910 - Fonte: Coleção Eustyquio DOlivier - IPHAN ES

Em minha estada na Vila da Vitória, apresentei-me em casa do Governador da Província, ao qual fora recomendado. Recebeu-me muito bem, deu-me um pedestre para servir-me de guia até o Rio Doce, razão da minha viagem, e entregou-me uma portaria (passaporte vigiado) assinado de próprio punho. “Aquele que o Senhor tem, do Ministro de Estado, disse-me ele, tornava-se suficiente, mas os soldados não sabem quem é o Ministro; eles só conhecem o Governador e minha assinatura colocará o Senhor a salvo de todos os apuros que se poderão suscitar.”

Incitou-me ele, muitas vezes, a não prosseguir minha viagem, e me apresentou sob as cores mais sombrias a região deserta que eu ia percorrer; sobre tudo não se cansava de prevenir-me contra a insalubridade das margens do Rio Doce: “O Rio Doce é um inferno”, tais foram as expressões de que usou ao falar-me desse rio. Mas, todas essas falas não faziam arrefecer minha curiosidade; eu havia resolvido ir até as fronteiras da Província de Porto Seguro e pus-me a caminho. Depois de despedir-me do meu hospedeiro, o Capitão-mor Pinto, atravessei a linha muito montanhosa onde sua casa e a capital da província se situam; e retornei pela margem do mar que do lado setentrional separa a ilha do continente. Esse pequeno canal pode ter a largura de nossos riachos de 3ª ou 4ª ordem. Passa-se por uma ponte de madeira, que ao tempo de minha viagem estava no pior estado de conservação e que provavelmente não tardaria a cair se, como tem ocorrido, não se fizer nela algum conserto. Ora segue o caminho pela praia, ora pelas matas virgens de que é cercado. Depois de cinco léguas, detive-me numa cabana construída em uma colina que domina o mar e que se chama Ponta dos Fachos. Fui muito bem recebido pelos moradores da choupana. Em geral, à proporção que me adiantava, era tratado com maior hospitalidade e em parte alguma encontrava a desdenhosa indiferença dos habitantes dos arredores do Rio de Janeiro.

Já me referi à Montanha de Mestre Alvo, que eu havia divisado ao chegar perto da Baía do Espírito Santo, por trás das colinas que bordam essa baía. Como o Mestre Alvo passa por um dos pontos mais elevados da Província do Espírito Santo e como, chegando a ele de Ponta dos Fachos, não teria de me desviar do meu caminho, decidi fazer essa pequena viagem; guiado pelo bom Luís, o pedestre que me acompanhava por ordem do governador, dirigi-me para oeste e percorri, durante longo tempo, uma região plana, por onde passa o Rio de Caraípe e que é entrecortada de capoeiras e mata virgens. De distância a distância, tinha o prazer de ver algumas cabanas. Estava-se então (13 de outubro) na época em que se tem o costume de queimar as matas, derrubadas uns meses antes. Em muitos trechos passei diante de partes de florestas assim destruídas e incendiadas.

Nada poderia ser mais triste que esse aspecto. Os ramos que com o incêndio se haviam desprendido das grandes árvores, os cipós e os arbustos haviam sido tisnados ou reduzidos a carvão e jaziam por terra, sem nenhuma ordem, lançados uns sobre os outros; a terra, seca e coberta, aqui e ali, de cinza alvacenta; afinal, de todos os lados via-se elevar-se dentre esses destroços a base dos grandes troncos, cortados dois ou três pés acima do solo. O sistema agrícola adotado no Império do Brasil é o de Tupinambás, Carijós, Tupiniquins e outras nações indígenas da sub-raça tupi, hoje exterminada; os luso-brasileiros adquiriram ainda desses selvagens a cultura da raiz que fornece seu alimento principal e à qual devem uma série de aplicações diversas; o conhecimento de alguns frutos bons e de vários remédios salutares; inúmeras palavras geralmente difundidas entre eles; por fim, a maior parte dos nomes de suas montanhas e de seus rios. Deveriam ter, muito bem, um pouco de compaixão pelos descendentes daquele que foram seus mestres.

Antes de chegar ao lugar onde fiz parada comecei a subir e logo me vi no meio de um grupo de colinas que apresentavam no topo largos planos de nível. Uma Melastomácea e uma Composta crescem em abundância nos declives desses morros. Há muito tempo vinha a avistando a Montanha de Mestre Alvo; além, ela se mostrava à minha vista com toda a sua massa pesada e respeitável; podia mesmo distinguir, aqui e acolá, plantações no meio das florestas que a cobrem. Para o ocidente, o horizonte é limitado pelas serras de cadeia marítima. No planalto de algumas colinas de que acabo de falar estão as choupanas, umas distantes das outras e esparsas; quase no meio delas vê-se uma igreja, cercada de relva, isolada como as próprias casas e sombreada por algumas palmeiras. Essa espécie de vila tem o nome de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra (paróquia N. S. da Conceição da Serra) ou simplesmente Freguesia da Serra, e é a cabeça de uma paróquia que compreende grande número de habitações situadas a oeste, com população de mais de mil almas.

Chegado à Freguesia da Serra, apresentei-me em casa de um dos seus principais moradores, que era capitão de milícia e pedi-lhe pousada; recusou-a, dizendo não ter lugar para alojar-me, e enviou um escravo para indicar-me uma casa na vizinhança. Durante a ausência do emissário, ficamos a conversar e forcei uma oportunidade para exibir-lhe minha portaria. O respeito dos brasileiros por seus superiores era tal, então, que a simples vista da assinatura do Ministro do Estado Tomás Antonio de Vila Nova e Portugal produziu o efeito de uma palavra mágica. Aí, a casa me foi oferecida, estava às minhas ordens; ele desejava hospedar-me definitivamente. Afetei importância e não dei aos meus empregados ordem de descarregar meus animais antes de saber, pelo negro do capitão, que a casa a que o haviam mandado já estava alugada. Durante todo esse dia achei insuportável o calor, provavelmente por me haver distanciado do mar. Sofri cruelmente dos nervos e à tarde, escrevendo meu “diário”, sentia a cabeça tão pesada que a imagem das coisas observadas no caminho me aparecia obscurecida.

Antes de me deitar, mostrei desejo de encontrar um homem que estivesse disposto a acompanhar-me no alto do Mestre Alvo e imediatamente meu hospedeiro pediu um guia ao comandante da Vila. No dia seguinte, o guia se apresentou e partimos. Eu queria, para acompanhar-me, um homem que conhecesse os caminhos, a quem pagaria, mas, falando com o que me haviam mandado, verifiquei que era um agricultor honesto, pertencente à milícia e percebi que lhe haviam dado ordens para servir-me de guia, porque, disseram-lhe, eu estava encarregado de uma missão pelo governo. Esse honrado homem, que era branco, obedecia-me alegremente, sem reclamar, não se queixando do trabalho acreditando que o fazia por Sua Alteza; assim era chamado o Rei, quando ainda Príncipe Regente, e grande número de brasileiros de classe média dava-lhe ainda, por hábito, tal título. A Montanha do Mestre Alvo é muito arredondada no cume; tem bastante largura, do oriente ao ocidente, e perto desses dois pontos o seu declive é muito oblíquo. Exceto alguns rochedos que se vêm aqui e acolá, a montanha é inteiramente coberta de matas virgens, no meio das quais de fizeram plantações de mandioca, algodão e milho. Subimos acompanhando a trilha de caçadores que tem o costume de percorrer esses lugares e chegamos ao pé de uma cascata, onde a água se precipitava no tempo das chuvas, mas que, então, só apresentava uma seqüência de rochedos úmidos, quase a prumo e cobertos de musgo. Meu guia assegurou-me, elogiando minha agilidade, que a maior parte dos caçadores da montanha não ia além da cascata; os louvores do homem me estimularam e escalei os rochedos com extrema facilidade. Embora houvesse andado muito, sentia-me revigorado; em vez do excessivo calor que tanto me havia fatigado na véspera, senti, desde o começo do dia, uma temperatura agradável, arvoredos entrelaçados impediam a infiltração mais ampla dos raios do sol e, por todos os cantos, eu encontrava, à sombra, regatos de águas cristalinas. Acima da cascata comecei a ver bambus, da grande espécie chamada taquaruçu. Essas gramíneas imensas precisam de umidade e de muita elevação; crescem nas montanhas do Corcovado e da Tijuca, perto do Rio de Janeiro, a uma altura análoga à do local em que então me encontrava. Não achei nenhum exemplar delas na costa muito baixa por onde viajara, quando da minha partida da Capital. As matas virgens do Brasil por vezes são tão obstruídas de espinhos e de cipós que não se poderia penetrar nelas sem abrir caminho a machado; por vezes, também apresentando dificuldades, não são em absoluto impenetráveis; desta ordem são as de Mestre Alvo.

Quase em toda parte, porém, os arvoredos ocultavam a campina; apenas num lugar ela se ofereceu a meus olhos. Lá do lado do oriente, divisei o mar; no ocidente avistei, à distância, as montanhas soberbas da cordilheira marítima, às quais se juntam outras mais próximas; finalmente, vislumbrei as colinas sobre as quais ficam as casas da freguesia e que, terminando todas por largo planalto, pareciam, da altura em que me achava, formar uma vasta planície. De um lado e de outro, colunas de fumaça subiam lentamente para o céu e mostravam onde as matas iam ser substituídas por plantações úteis.

Passei o dia inteiro na Montanha de Mestre Alvo e voltei para casa quase sem ter colhido qualquer planta. A vegetação é, sem dúvida, muito variada nas matas virgens; é admirável pelo vigor e pelos contrastes que mostra a cada passo; contudo, muito pouca flor, se acha sob esses grandes arvoredos que privam de ar e de luz as ervas e os arbustos que crescem a seu pé; as próprias árvores parecem, como disse noutra parte, florescer bem raramente e são bastante arrojadas para não deixar perceber suas flores, em geral menores que as dos vegetais menos vigorosos. Passarão, provavelmente, muitos anos, antes que se conheça, com algumas exceções, outra flora brasileira que não a das ervas e a dos arbustos. Só botânicos sedentários poderiam dar a conhecer as árvores das matas virgens e não sei se, depois da morte do meu amigo padre Leandro do Sacramento, se formou botânico no Brasil.

Na Montanha de Mestre Alvo, vi grande quantidade desses alçapões chamados mundéus, que é costume fazer para pegar quadrúpedes. Nos lugares em que a caça costuma passar, os caçadores deixam apenas um atalho, ladeado de estacas altas, de cerca de 5 a 7 pés, aproximadamente. Entre as duas estacadas são postos, paralelamente e a 4 pés da terra, tabuões pesados, sustentados por 2 varas transversais.

Descansam eles sobre duas varinhas postas horizontalmente, uma fora de uma das filas de estacas e outra fora da segunda; uma das varinhas é fixada numa das filas ou estacadas; a outra varinha, cortada pela metade, é apenas ligada, no ponto de separação, por um cipó e se une a um pequeno laço eriçado, entre as estacadas. As caças bravas, passando nos atalhos, puxam o laço, que força o cipó; as duas partes tinidas da varinha se separam bruscamente: toda a armação desaba e os tabuões caem em cima do animal.

Voltei da Freguesia da Serra pelo caminho que me havia levado e fiz alto, a curta distância do mar, no lugar chamado Caraípe. É uma espécie de aldeia que se compõe de algumas casas muito distantes umas das outras e que deve seu nome ao pequeno ribeiro perto do qual foi construída. A casa onde dormi fica no alto; pertencia a mulatos pobres e excelentes, que pareceram receber-me com prazer.

O caminho que segui entre Caraípe e a Vila de Almeida é perfeitamente igual. Embora se prolongue paralelamente ao mar só costeia espaços muito pouco consideráveis e ora atravessa terrenos quase semelhantes às restingas de Saquarema e do Cabo Frio, ora matas virgens e capoeiras. Passei alguns ribeiros sem importância e por fim alcancei a Vila de Almeida, quase totalmente construída pelos índios civilizados. Essa vila, fundada pelos jesuítas antes do ano de 1587, tinha outrora o nome de Aldeia dos Reis Magos. Seu novo título lhe foi dado em 1760 e, na mesma época, fez-se de Almeida a cabeça de Comarca de uma paróquia.

Embora este último nome haja sido consagrado por atos legais, os de Vila dos Reis Magos e sobretudo de Vila Nova parece terem prevalecido no uso comum.

Os índios de Vila Nova têm hoje, como os de São Pedro, um capitão-mor de sua raça, e a administração de todo o distrito está em mãos de dois juízes ordinários, um índio e outro português, que se revezam mensalmente no serviço.

A exceção do provedor, todos os membros da comarca ou senado municipal do termo são, da mesma forma, índios. Almeida ou Vila Nova situa-se na embocadura de um rio, numa colina que apresenta no topo uma larga plataforma, dominando vasta extensão do mar. As casas, na maior parte, dispõem-se no alto do outeiro, à volta de uma praça regular, que tem a forma de um longo quadrilátero com cerca de 140 pés por 260.

O antigo convento dos jesuítas e sua igreja ficam ao norte da praça e ocupam um dos seus lados menores. Entre as casas que se vêem de distância a distância há altares destinados às estações da semana santa, cada um colocado em pequeno nicho, uma espécie de caixinha alongada. Por trás das casas situadas na praça, há outras que, construídas a curta distância, formam com as primeiras uma rua pouco larga. Do lado do ocidente acham-se ainda umas ruas muito curtas. Excetuado pequeno número de casas ocupadas por portugueses, todas as demais são apenas choupanas, sem argamassa, cobertas com palha de palmeiras.

O rio que corre ao pé de Vila Nova, do lado norte, tem o nome de Rio dos Reis Magos, é pequeno e só dá entrada a pirogas. Parece que, por essa razão, os jesuítas haviam preferido a posição da Vila Nova à da Aldeia Velha, lugar situado ao norte da embocadura de um rio navegável. Entrava isto em seu sistema de afastar os portugueses dos índios e tinham o máximo cuidado de acertar, quando escolhiam, como em Benevente, as margens de um rio para aí formarem aldeias. Eu havia passado duas vezes por Vila Nova e perguntara muito sobre os jesuítas aos índios da região, entre outros a um homem cheio de humor e de experiência que tinha conhecido esses padres; deram-me, várias vezes, informações contraditórias; limitar-me-ei a consignar aqui o que pude observar como certo. À Aldeia dos Reis Magos só tinham chegado dois religiosos professos, que, por prudência, eram mudados de três em três anos; mas era nesse lugar que os noviços vinham aprender a língua dos indígenas. Durante os quase duzentos anos, em que estiveram à testa desta província, os jesuítas recusaram-se decididamente a pôr em uso, segundo as circunstâncias, algumas mudanças em seu modo de administrar. Entretanto, quase quarenta anos antes da extinção de sua Ordem, tinham os índios ainda na obediência a mais estrita. De três em três meses traziam do campo à aldeia quarenta famílias, para lhes ensinar a religião cristã, para dar aos homens alguma noção de diversos trabalhos e para que as mulheres aprendessem a fiar algodão e a fazer panos. Quando o trimestre se escoava, as quarenta famílias eram substituídas por outras. Parece que, por volta de 1720, algumas idéias de independência já se haviam introduzido entre os índios de Reis Magos. Cansados das regras severas a que eram sujeitos, foram levar suas queixas ao Governador da Bahia e este obrigou os Jesuítas a dar-lhes mais liberdade. No que diz respeito aos nativos esses religiosos não governavam diretamente os indígenas, mas nomeavam o capitão-mor e os outros oficiais encarregados de zelar pela manutenção da boa ordem e de punir os que cometessem qualquer falta. Nenhum português entrava na aldeia sem permissão dos jesuítas e era proibido aos índios falarem em outra língua que não a própria; podiam entretanto ir à Vila da Vitória vender suas mercadorias e procurar os objetos de que tivessem necessidade. Os jesuítas escolhiam as crianças que evidenciassem disposição e enviavam-nas ao convento do Rio de Janeiro, para aprenderem diversos ofícios; encontrava-se gente de toda condição na Aldeia dos Reis Magos. Parece que essa aldeia, mesmo a própria igreja e o convento, foram construídos pelos índios. A música era, como já disse, um dos meios de que se serviam os padres da Companhia de Jesus para atrair os índios. Enviavam também ao Rio de Janeiro as crianças que tinham tendência para essa arte; traziam-nas de volta logo que estivessem suficientemente instruídas e afirma-se que na igreja da aldeia sempre se ouviam músicos muito hábeis.

Não é verdade que as colheitas aqui fossem colocadas em comum e em seguida repartidas pelos jesuítas, como ocorre no Paraguai; também não é verdade que os índios fossem obrigados, como em São Pedro, a trabalhar para o convento certo número de dias por semana. O chefe de família faz a própria cultura e goza livremente do fruto de seus labores.

Os jesuítas faziam plantações e, quando chegava o momento de trabalhar, toda a Aldeia era convidada a fazê-lo, concluindo-se a obra em pouco tempo.

Quando faltava um ornato na igreja, os padres levavam os índios a cortar madeira; transportavam as tábuas numa prancha que pertencia à Ordem e, ao fim de algum tempo, o ornamento desejado chegava à Vila. Em geral, os discípulos de Loyola convenciam os índios com doçura; ensinavam às crianças; não recebiam qualquer retribuição pelo batismo, casamentos e enterros; e todos são acordes em dizer que visitavam os doentes, ministravam-lhes remédios e lhes prodigalizavam os maiores cuidados. Portugueses e indígenas afirmaram que os jesuítas governavam a chicote os habitantes da Aldeia dos Reis Magos, tal como são tratados ainda hoje negros escravos. Parece certo que, antes da extinção da Companhia de Jesus, foi posto à frente da redução um religioso que abusou muito de seu poder; mas, ao fim de seu governo, tudo voltou à ordem costumeira. Os índios da costa perderam, depois de longos anos, os hábitos da vida selvagem e ainda que tivessem a coragem de voltar às florestas, aí seriam perseguidos como caça brava.

Como tive ocasião de dizer, o caráter desses desvalidos homens da natureza exigiria que fossem tratados com doçura, amor e firmeza, por tutores benévolos e desinteressados, que tivessem sobre eles grande domínio de reflexão e de inteligência. Esses tutores, diga-se a bem da verdade, eles os tiveram nos jesuítas. Entretanto, teriam ressentimento do governo da Companhia de Jesus por estar persuadidos de que ela pretendia destronar o soberano do Brasil e colocar-se em seu lugar, o que a seus olhos era o maior de todos os crimes.

A acusação aqui comentada, já foi satisfatoriamente refutada por um historiador consciencioso, o Sr. Robert Southey, que não seria suspeito, porque, unido à fé protestante, tem-se oposto fortemente ao catolicismo.

Mas a falta que os índios têm sentido dos jesuítas demonstra suficientemente toda a falsidade dessa única acusação; quem de fato havia inspirado aos indígenas esse respeito idolátrico que tinham pelo Rei, senão os jesuítas? Depois da destruição dessa ordem, o Governa português deixou à comunidade dos índios de Vila Nova um território que foi declarado inalienável e que se estende além do sítio chamado Cababa, do lado sul, até Comboio, do lado norte.

Deram-se sesmarias nas terras dos índios aos portugueses que desejavam estabelecer-se; mas esses, aqui, são obrigados a pagar dois tostões anualmente, por cem braças, ao Senado Municipal da Vila e não podem vender mais que suas colheitas e as construções que erguem no terreno de que são foreiros. Os privilégios dos índios da Vila Nova são, assim, semelhantes aos originariamente concedidos aos habitantes de São Pedro e de Benevente; mas, aqui houve pouca oportunidade de violar os direitos dos indígenas, porque a região não apresenta, por assim dizer, qualquer atrativo à cobiça: é menos fértil, isolada, vizinha dos botocudos; nela as formigas causam contínuos estragos; por fim, o Rio dos Reis Magos pouco oferece em pequenos recursos de transporte.

Malgrado as vantagens de que ainda gozam os índios de Vila Nova, sua vila se acha nas condições da mais desoladora decadência. O convento cai em ruínas; quase todas as casas necessitariam ser consertadas e muitas estão desertas. Conhecendo a inconstância e a preguiça dos índios, os jesuítas os haviam submetido a uma austera disciplina; para que fossem verdadeiramente felizes, queriam que eles trabalhassem e não deixavam sem punição o ócio.

Depois que a Companhia de Jesus foi destruída, os habitantes da aldeia, libertos de uma útil vigilância, foram abandonados à própria índole; não trabalharam mais com a mesma regularidade e muitos caíram na indigência, onde haviam ido procurar, aliás, meios de subsistir. A emigração dos índios, sua extrema miséria e a distância a que ficaram da Vila Nova foram ainda outras causas. A mão de ferro dos governadores da Província do Espírito Santo agravou seus infortúnios. Todos os meses tirava-se dentre eles (1818) certo número de índios, casados ou não, para pô-los a trabalhar na estrada de Minas, no hospital de Vila da Vitória, na nova Vila de Viana ou Santo Agostinho, etc.; eram mal alimentados; durante muito tempo não lhes foi dado salário algum e, na época de minha viagem, somente depois de dois meses é que se começava a juntar à sua alimentação uma retribuição de dois vinténs, ou cinco soldos, por dia.

Aqueles que quisessem subtrair-se a essa tirania, eram enviados amarrados à Vila da Vitória, e muitos sucumbiram em meio aos rudes trabalhos a que os haviam condenado.

Transportando suas casas da Vila, os índios de Vila Nova fizeram logo outra aldeia nas terras que cultivavam: para lá se retiraram as mulheres e as crianças privadas de seus maridos e de seus pais, e a velha aldeia foi abandonada. Houve mesmo famílias que se foram refugiar nas solidões profundas e outras que se distanciaram da província. No tempo dos jesuítas, contavam-se 3.700 índios em Vila Nova e seus arredores, ao passo que hoje o território desta vila, em globo, tem 1.200 habitantes numa circunferência de 9 léguas. Os indígenas que permaneceram na região pescam e cultivam a terra; mas, em geral, não plantam mais que o estritamente necessário à sua família. Entre os índios de Vila Nova, que colhem víveres além do necessário a seu gasto, uns vendem o excedente aos portugueses estabelecidos entre eles ou a comerciantes de fora; outros embarcam em suas pirogas com feijão, algodão ou farinha, que vão vender na Vila da Vitória, seguindo sempre a costa, que conhecem perfeitamente. Os índios do litoral são, em geral, exímios no mar. A imprevidência que os distingue fecha-lhes os olhos aos perigos; os longos intervalos de repouso que a navegação permite, convêm à sua indolência e a força de que são dotados facilita seus trabalhos marítimos. Desde os tempos mais antigos, a vizinhança do oceano os havia tornado pescadores e esse ainda é um dos misteres que se ajustam melhor a seu caráter. Vivendo sempre no presente, sem ter paciência de esperar, querendo colher à tarde os frutos do labor do dia, eles devem, naturalmente, preferir a pesca aos cuidados da agricultura. Pela mesma razão, não há ocupação que apreciem tanto quanto a de serrar árvores. Vêem logo os resultados desse trabalho, puramente mecânico e, enquanto movem os braços, de maneira uniforme, seu espírito se livra, nessa divagação própria de sua raça, que faz o encanto de sua existência.

Não se pode crer, portanto, que os índios de Vila Nova, São Pedro dos índios, Benevente, etc., sejam sem aptidões e sem inteligência; eles têm mais facilidade de imaginação que os luso-brasileiros desta mesma parte da América, pelo menos os de regiões que se estendem do Rio de Janeiro até a Paraíba; demonstram menos tristezas e têm mais vivacidade nas respostas. Entretanto, essas qualidades não lhes servem para o futuro; eles pertencem por inteiro ao presente o que ganham gastam no mesmo instante; bebem, amam e, logo que nada mais têm, sofrem a fome sem proferir um lamento. Mostram-se tão cheios de paciência, tão tranqüilos quanto desleixados e pode mesmo ser que as duas primeiras qualidades não passem do resultado da última.

Falando dos árduos trabalhos a que os condenara o Governador da Província, os índios de Vila Nova não deixavam escapar um murmúrio; o serviço do Rei o exige — essas palavras, pronunciavam-nas do mesmo modo como um fatalista teria podido dizer: tal é a sentença do destino. A falta de boa fé é um dos defeitos que lhes são insinuados com muita justiça; mas esse defeito é certamente, entre eles, bem menos indesculpável que entre os de nossa raça. Como não permanecerem estranhos à honestidade, se são humilhados sem cessar pelos descendentes de europeus? Talvez mesmo, no momento em que dão sua palavra, tenham a intenção de mantê-la; mas são muito inconstantes, têm uma noção muito confusa do futuro para poderem ser fiéis aos compromissos que assumem; são crianças que não sabem dos obstáculos que devem encontrar. O velho índio de Vila Nova, do qual já tenho falado e com quem me distraí muito tempo, não queria admitir para sua tribo o nome de Tupi e considerava essa palavra como uma alcunha injuriosa, imaginada pelos Tapinjas ou Tapuios.

Segundo esse velho, sua tribo havia tido o nome de Moçu; era mesmo, acrescentava, o que se davam ainda, entre si, os índios de Reis Magos no tempo dos jesuítas.

Os habitantes de Vila Nova, de Aldeia Velha e Periquiaçu, vilas que darei a conhecer mais tarde, falam absolutamente a mesma língua, aquela que os jesuítas chamavam língua geral e da qual haviam feito o dicionário e a gramática. Nestes encontrei palavras que meu velho índio já me havia dito em São Pedro dos Índios; na maior parte, eram as mesmas que se empregavam em Vila Nova; entretanto, algumas e principalmente os verbos, oferecem diferenças, sem dúvida, introduzidas pelo tempo e pela falta de comunicações. O quadro seguinte mostrará não só essas diferenças, mas também algumas das que existem entre os dialetos atuais de São Pedro, como de Vila Nova de Almeida, e a língua geral tal como os jesuítas a escreveram no seu dicionário, obra provavelmente composta no século XVI:

Imagem do quadro descrito logo acima, consta no final da matéria.

Ao chegar a Vila Nova fui ver o capitão-mor índio, para lhe pedir que me indicasse uma casa onde pudesse passar a noite. Cometi a indelicadeza de não lhe mostrar minha portaria e percebi depois que ele se havia agastado com esse esquecimento. Recebeu-me mal, deu-me, entretanto, a chave de uma pequena casa destinada aos soldados que vêm do Rio Doce ou que para lá vão. Depois do jantar teve com o meu tropeiro uma discussão muito viva; mas o padre que eu havia visto e que era homem excelente apaziguou os ânimos. No dia seguinte, reparei minha falta, voltando à casa do capitão-mor; tive então cuidado de lhe mostrar meu passaporte e ele me fez muitas gentilezas. Esse homem não tinha a cor bistrada, como a maioria dos outros índios; tinha somente um pouco amarela, sem dúvida por sair pouco de casa, isso tende a confirmar a opinião que os senhores d'Eschwege, d'Olfers e eu emitimos sobre a cor dos índios do Brasil.

O título de capitão-mor indica, ordinariamente, um homem rico e importante; o de Vila Nova não era uma coisa, nem outra. Sua casa só se distinguia das de seus administrados porque era caiada por dentro e por fora. Uma cadeira, duas mesas e outras tantas arcas formavam todo o mobiliário da sala principal, em que eu fora recebido. Encontrei na casa do capitão-mor um velho português que o tratava com uma espécie de superioridade respeitosa, como o preceptor de um príncipe tem por costume tratar seu discípulo; esses dois personagens conjugaram seus conhecimentos para ler minha portaria, que era perfeitamente clara, e fui obrigado a ajudá-los freqüentemente.

 

Fonte: Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce ano 1974
Autor: Auguste de Saint-Hilaire
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2015



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