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Viajantes Estrangeiros ao ES – Charles Frederick Hartt

Charles Frederick Hartt - (1840-1878)

Nos anos de 1865-66, o geólogo canadense naturalizado norte-americano, Charles Frederick Hartt viajou através do Brasil, em companhia de Edward Copeland, como integrantes da Expedição Thayer, dirigida pelo professor Luiz Agassiz. As suas explorações de geologia e paleontologia se concentraram nas proximidades do Rio de Janeiro e litoral das províncias fluminense, capixaba e baiana.

Em julho de 1886, os dois se juntavam ao Prof. Agassiz, no Rio, para regressarem à América do Norte. Mas, no ano seguinte, Hartt voltava ao nosso país, em férias alongadas. Por iniciativa própria, fez outra viagem, continuando as pesquisas iniciadas. Dessa maneira, esteve, pela quarta vez, em Vitória.

O sábio resumiu seus estudos num livro que publicou em Boston, no ano de 1870; só apresentado em nosso vernáculo setenta e um anos depois, na tradução de Edgar Süssekind de Mendonça e Elias Dolianti: "GEOLOGIA E GEOGRAFIA FISICA DO BRASIL.

O "fundador da nossa geologia", segundo classificação de Roquette Pinto, prefaciador da edição brasileira, além de acurado observador, revelava sensibilidade artística, mostrando qualidades de mestre no desenho a bico de pena. Vem daí o ter feito um livro magnificamente ilustrado.

Hartt e Copeland começaram a viagem a 19 de junho de 1865, partindo do Rio de Janeiro. Detiveram-se em Campos, estudando a região, bem como fazendo coleções de peixes e outros animais. Subiram, em canoa, o rio Paraíba, até São Fidelis. Daí, cavalgaram, numa estrada através da mata, rumo à povoação do Senhor Bom Jesus. Desceram o rio Itabapoana e pararam no porto de Limeira, na barra. Pela praia, seguiram até Vitória, tendo feito importantes coleções nas águas do Itapemirim e em Guarapari, além de Hartt estudar a geologia daquele litoral capixaba.

A pretensão de prosseguir viagem até o Rio Doce frustrou-se, dessa vez, com a falta de dinheiro, indo os dois cientistas semente até Nova Almeida, donde regressaram a Vitória e embarcaram retornando ao Rio de Janeiro.

Como demorassem a encontrar um navio para voltarem à capital capixaba, acabaram viajando num pequeno e lerdo veleiro, uma viagem enfadonha, e alcançaram São Mateus.

Hartt colheu um croquis do contorno da "serra de Itapemirim vista do mar": destacou, na parte suI, o "pico muito notável e irregular, chamado o Frade"; o Itabira, "dedo de, mão gigante erguida contra o céu", e o morro Agá, "um dos distintos marcos da costa".

O geólogo informou-se da ocorrência de ferro nas serras do Itapemirim, não tendo ocasião de verificar a veracidade dessa notícia.

Usando rica bibliografia, honestamente mencionada, com o destaque de Saint-Hilaire, Príncipe de Neuwied, Aires de Casal, Barão de Tshudi, e o DICIONÁRIO GEOGRÁFICO, de Saint-Adolphe, valorizou, de muito, litoral capixaba, feitas com fidelidade.

No litoral sul de Guarapari, ele desenhou o perfil de um monte oblongo, que avança para o mar como proa de um navio.

Ele e Copeland encontraram, nessa praia, considerável variedade de invertebrados, desde os ouriços do mar, apreciado alimento dos índios, até as estrelas, tão ornamentais e decorativas, em abundância somente superada na baía de Vitória. O sábio observou que a região, rica em crustáceos, é pobre em moluscos, como toda a costa.

Os terrenos pantanosos, na vizinhança daquela hoje tão procurada estação balneária, tornavam-na insalubre e constituíam a barreira ao seu progresso.

Na vazante do mar, os dois paleontólogos recolheram múltiplas espécies de invertebrados, junto aos recifes, organizando uma coleção para o Museu de Zoologia Comparada, de Cambridge.

Na Ponta do Jucu (Hartt escreveu Jecu), no morro de gnaisse que achou um tanto semelhante ao da Ponta da Fruta, notou que, segundo um esboço do seu caderno de notas (não incluído no livro), o rio vai mar a dentro, ao sul da ponta, enquanto que na cartografia de Mouchez o desaguadouro é pelo lado norte. Admite que, na época em que essa carta foi levantada, alguma tempestade teria feito o desvio das águas.

Um desenho de página mostra a entrada da "baía do Espírito Santo, vendo-se o Pão de Açúcar e a cidade de Vitória". O perfil das montanhas está bem destacado, mas a cidade é apenas pequena mancha branca no cruzamento das diagonais da figura. A descrição da baía e rochedos que a circundam e emolduram, mereceu demorado estudo. O artista desenhou outros panoramas: "Monte JUCUTUOUARA e morros de gnaisse próximos de Vitória"; "Fortaleza de PERITININGA", ou seja, o forte de São Francisco Xavier da Barra, ao sopé do Moreno, desenho bem mais fiel do que o feito por Biard.

Outro esboço na entrada do porto: a Pedra dos Ovos, apresentando um homem encostado à mesma, num evidente objetivo da avaliação das proporções, sob legenda: "BOLDERS de decomposição, Vitória". Na Ilha do Boi, o mesmo artifício: um homem de pé, sobre "superfície decomposta".

A serra de Mestre Álvaro foi destacada em panorama, bem como o Convento da Penha, visto do mar, com riqueza nos detalhes do bico de pena. É de lamentar a figura do Convento tão reduzida, uma vez que não subsistiram as fotografias do mesmo, daquela época.

Ao esboçar o Pão de Açúcar, ou Penedo, o geólogo preocupou-se em evidenciar a linha da altura das marés, notando que ela não é distinguível ao longo de toda a extensão da escarpa. A observação data de fins de agosto de 1865. Vinte e cinco meses depois, ele voltou para confirmá-la, passada a lua cheia. E esculpiu no rochedo, a cinzel, uma cavidade, marcando a altura da maré de 13 de setembro de 1867.

Adelfo Monjardim, setenta e quatro anos após a data mencionada, teve a curiosidade em procurar e achou, numa cova de pedra, a marca de Hartt, em forma de brasão, com doze centímetros de comprimento por sete de largura.

O geólogo deduziu que a região se está erguendo, tendo sido as montanhas, em tempos remotos, ilhas na entrada da barra.

Adelfo Monjardim achou, sem esforços, em diversos pontos da ilha, a confirmação da teoria: ostras encrustadas e conchas, em camada humosa, nas rochas de Jucutuquara, na encosta dos morros da Capixaba e Vigia, e na estrada do Contorno da Baía de Vitória.

Num estudo geológico do Espírito Santo, apresentado em Congresso, na Paraíba, em maio de 1922, o Prof. Arquimimo Matos, em reforço à hipótese das elevações das rochas graníticas de Vitória, aduziu que "não constitui a hipótese um absurdo, se considerarmos que recifes de coral foram encontrados por Agassiz a 880 metros acima do nível do mar na costa do Peru e na Ilha da Trindade, pelo Dr. Williams, a cerca de meio metro fora d’água". E transcreve Branner: "Na Vitória, Estado do Espírito Santo, uma linha horizontal próxima à base do pico de granito "Morro Primeiro de Março", dois metros acima do nível d'água, mostra uma elevação da costa. Este sulco é provavelmente causado pelo primitivo crescimento naquela linha de algas e outros organismos".

Deve-se notar que, já no ano de 1774, Voltaire escrevia no seu DICIONÁRIO FILOSÓFICO que "os leitos, as camadas de conchas descobertas por todas as costas a sessenta, a oitenta, a cem léguas mesmo do mar, constituem prova incontestável de que ele depositou pouco a pouco seus produtos marinhos sobre terrenos que eram outrora as margens do oceano..."

O recuo do mar e o conseqüente erguimento do litoral, serviu aos arqueólogos para determinar a idade de Eridu, a mais antiga cidade babilônica. As águas do Golfo Pérsico, que banhavam, primitivamente, os seus alicerces, recuando em progressão regular de quarenta metros de área por ano, já distanciaram das suas ruínas uns duzentos quilômetros.

Um acatado divulgador da história capixaba proclamou que Hartt foi quem batizou o rochedo com o nome de Pão de Açúcar. Evidente equívoco. O relevo arredondado, semelhante a uma manteigueira (POT-AU BEURRE, de Léry), comum a montanhas de gnaisse e granito em toda a costa, cuja esfoliação e erosão evolvem para a forma tão característica, é bem uma lembrança das fôrmas de barro nas quais se modelavam os pães-de-açúcar do Brasil - Colônia.

Já o holandês João de Laet escrevia na sua HISTÓRIA DO NOVO MUNDO, editada em 1633, que, para entrar na baía do Espírito Santo, se passava, pela esquerda, por um monte elevado a que os portugueses chamam "Pão de Açúcar, porque tem essa forma..." E um contemporâneo de Hartt, o 1° Tenente da Armada Imperial, Colatino Marques de Souza, imprimiu, em 1860, um roteiro da costa do Brasil, referindo-se a essa "montanha em forma de pirâmide cônica chamada Pão D'Açúcar", pela qual era necessário passar "quase a tocá-la com a mão"...

Em visita às praias de Vila Velha, Hartt notou a quantidade corais, afirmando serem ali mais abundantes do que em qualquer outra praia que conheceu na América do Sul. A espécie mais vulgar, CACHIMBO ou BURGIGÃO, era usada pelos habitantes da vila no fabrico da cal. O geólogo não excursionou pelo interior, restringindo-se a um estudo mais detalhado da baía de Vitória.

Com referência à colônia de Santa Leopoldina, traduziu as impressões que o Barão de Tschudi condensou no seu REI-SEN DURCH SUD-AMERIKA e testou, pessoalmente, em Vitória, palestrando com colonos de Santa Leopoldina, algumas informações do viajante alemão. Hartt sentiu a pobreza da província capixaba: considerou-a como "uma das mais pobres e piores do Império", apesar das suas abundantes fontes de riqueza. Estranhou o absurdo do consumo de bacalhau, numa costa tão piscosa. Ele mesmo verificou a grande variedade de peixes, pescando de linha nos baixios vitorienses.

Sempre ajudado pela rica bibliografia, estudou os terrenos de Carapina e a serra de Mestre Álvaro, tendo feito uma rápida visita à vila da Serra.

Desenhou, em cortes, o longo perfil da faixa litorânea, desde Vitória até o Rio Doce, visto do mar, à altura do Riacho. E escreveu: "Tenho navegado várias vezes próximo da costa de Santa Cruz ao Rio Doce, mas nunca desembarquei, e sinto-me incapaz de descrevê-Ia detalhadamente, assim como os terrenos, abaixo, que ficam por trás dela, nem tenho qualquer informação digna de confiança".

Observou que os canais das lagoas e pântanos, "nunca explorados", apareciam nos mapas sempre representados com incorreções.

Quando esteve em Porto do Souza, ponto extremo da excursão ao Rio Doce (dezembro de 1865), observou que o rio ali se estreita acentuadamente e fez um desenho do porto. Outra vista que colheu, do Rio Doce, é emoldurada por uma serra ao fundo.

Com o seu companheiro Copeland, Hartt, descendo de Linhares, depois de explorar a lagoa Juparanã, recolheu uma grande coleção de peixes no Rio Doce, destinada ao Prof. Agassiz. Na foz do  Mutum, pescaram espécimes de peixe-serra.

A imponência da vegetação mereceu esses comentários, em seu livro: "Em parte alguma do Brasil, nem mesmo no Pará, vi floresta mais exuberante do que a do Rio Doce". E, continuando: "A floresta forma uma densa muralha ao longo do rio, tão densa que o olhar não penetra em sua sombra".

O principal artigo de exportação que notou, não foi o jacarandá e, sim, o pau-rosa, que já estava escasseando, devido à procura. Viu abundância da copaíba, do pau-brasil e da sapucaieira, cuja castanha, semelhante à do Pará, era alimento que os botocudos aprenderam a comer com os macacos.

Criticou a estampa do Príncipe de Neuwied representando o Rio Doce. Disse que era possível passar um mês naquele caudal e não se ver um crocodilo, como o que Neuwied representou na estampa. Poder-se-ia ficar a vida toda, ajuntariamos nós, uma vez que a citada espécie de réptil anfíbio não existe no Brasil. Mas, os centenários jacarés do rio São Mateus, os PAPO-AMARELOS ou URURAUS e JACARETINGAS, conforme espécime empalhado do Museu de Jucutuquara, em Vitória, seriam muito capazes de estabelecer confusão ao desenhista.

Hartt mencionou as caças do Rio Doce, com suas designações científicas, destacando, além do jaguar preto, quatro espécies de onças.

A dez léguas abaixo do Porto do Souza, na margem norte do Rio Doce, onde o Dr. França Leite havia estabelecido a colônia Francilvânia, com alguns povoados, Hartt divisou, apenas, capoeirões.

Os braços que ligam as lagoas ao Rio Doce figuravam, a seu ver, sempre com erros em todos os mapas que conhecia, fato resultante de nunca haver sido publicado um estudo fiel do rio. Obteve informações dos trabalhos de mapeamento realizados pelo engenheiro Frederico Wilner, por encomenda de uma companhia inglesa.

Próximo a Linhares, Hartt desenhou outra vista do Rio Doce. Um fazendeiro da região, Rafael Pereira de Carvalho, procurou orientá-lo sobre peculiaridades do rio.

Nas margens da lagoa Juparanã, o geólogo viu a fazenda do GUAXE, bem como pequenas propriedades, com uma fazendinha no entremeio. O lápis do artista colheu um panorama da lagoa, "olhando-se para o lado da costa" e outro da Lagoa do Aviso, reproduções prejudicadas pelo tamanho reduzido dos clichês.

Hartt esteve na fazenda BOM JARDIM, em Linhares, admirando as lavouras de cana, bananeiras e outras plantações.

Havia pequeno comércio de sal, feito em canoas que subiam da costa a diversos portos do Rio Doce. O saco de sal, adquirido por dois mil réis (equivalente a um dólar), alcançava em Minas preço acima de oito mil réis. O cientista encontrou colonos americanos recém-chegados, dos estados do sul, para formarem uma colônia agrícola no Rio Doce, e augurou-lhes sucesso no empreendimento, que, infelizmente, se condenou ao fracasso.

Do Rio Doce, regressaram a São Mateus.

No trecho deserto da costa, entre a foz dos dois rios, os cientistas não devem ter sido muito molestados pela sede, conforme ocorreu com a comitiva do Príncipe de Neuwied. Hartt referiu-se à existência, no fatigante percurso, de água potável, da pequena lagoa Pitanguinha, próxima à praia.

Sobre a lagoa Monserrás, escreveu: "Quando fui para o Doce, partindo de São Mateus, esta barra estava fechada mas, na minha volta, na última parte de dezembro (1865), estava aberta, e perigosa para atravessar".

Percorrendo a longa praia que faz lembrar o deserto do Saara os viajantes encontraram esqueletos de tartarugas do mar e (em novembro) surpreenderam as tartarugas repousando nas proximidades de Barra Seca.

Os dois pesquisadores armaram, nesse ponto, a barraca de campanha, e apresaram meia dúzia de quelônios, destinados ao Museu de Zoologia Comparada.

Hartt criticou outra gravura representada no livro do Príncipe de Neuwied: uma tartaruga desovando, Observou a inexatidão da mesma, bem como a irregularidade no tamanho dos ovos. Observação injusta, como sabemos.

Era época de postura. O cientista verificou o interesse dos capixabas pela abundante colheita de ovos. Em pouco tempo, enchiam balaios, que eram carregados por mulas.

A despeito da quantidade (cada ninho continha de cento e vinte a cento e cinqüenta ovos) e devido ao fato de serem procurados pelo lagarto teiú, e também porque as tartaruguinhas chocadas ao calor da areia, que escapavam e procuravam o mar, eram, na maior parte, comidas pelos peixes, Hartt observou que as tartarugas destruídas, todo ano, eram tantas, que as espécies acabariam afugentadas da costa.

Com efeito, o tempo mostrou o acerto do prognóstico: as tartarugas rarearam a tal ponto que os grandes exemplares, quando apresados, hoje em dia, pelos pescadores, constituem verdadeiro fenômeno que desperta a curiosidade pública.

Um fato que deve ter influído na preservação dos espécimes centenários, vistos por Neuwied e por Hartt, seria o preconceito que os primitivos selvagens tinham — segundo observou Thevet — de que esse alimento os tornaria morosos e fracos nos combates, por isso mesmo o repeliam.

O engenheiro Herr Robert Schlobach, que estava a serviço do governo imperial no Mucuri, emprestara a Hartt um mapa manuscrito da região do Rio São Mateus e o mesmo foi de muita utilidade aos dois viajantes. Visitaram, a cavalo, a fazenda do CAPITÃO GRANDE, afastada umas quarenta e cinco milhas da vila de São Mateus. Nas encostas, as lavouras de café mostravam-se viçosas e carregadas de frutos.

Hartt confessa que não teve ocasião de percorrer o braço sul do rio São Mateus. Esteve, também, na fazenda CAMPO REDONDO, de cujo aspecto esboçou panorama, destacando, no primeiro plano, a casa de farinha; mais atrás, a casa da fazenda, as senzalas, e um coqueiral na linha do fundo.

Atribuindo certa importância a São Mateus, fez para a cidade uma estimativa populacional de cerca de dois mil habitantes.

Referindo-se a uma observação do Príncipe de Neuwied, de que o peixe-boi era encontradiço naquelas regiões, escreveu: "Enquanto estive em São Mateus e durante a minha demora de três meses nessa parte da costa, nunca ouvi falar desse animal e não acredito que seja atualmente encontrado".

Parece-nos importante observar que a espécie animal, outrora tão abundante, na capitania, podia ser considerada extinta, em começos do século dezenove. A propósito, vale lembrar o documento quinhentista, de Pêro de Magalhães Gandavo: TRATADO DA PROVÍNCIA DO BRASIL (1572?), que faz alusão, indiretamente, ao Rio Doce, "no qual se acham mais peixes-bois do que em nenhum rio da costa".

Na fazenda do coronel Olindo Gomes dos Santos Paiva, Barão de Timbuí, região do rio Itaúnas, Hartt visitou lavouras de primeira, especialmente de café e mandioca, comparáveis, em qualidade, às de São Mateus.

O capítulo final do livro de Hartt é dedicado ao estudo dos botocudos, e foi na colheita dos subsídios que o cientista se demorou mais tempo em São Mateus. Valeu-se das observações do Barão de Tschudi, do Príncipe Maximiliano de Neuwied e do antropólogo M. Serres, mas ajuntou observações pessoais.

Dos quatro perfis de botocudos, de São Mateus, que Hartt esboçou no caderno de notas, estampou dois, um casal, no livro. Ele viu muitos tapuias no Rio Doce e em São Mateus, de cujas cabeceiras, onde eram comumente encontrados, desciam à procura de víveres, cachaça e fumo. Davam, em troca, o trabalho voluntário, apesar de serem muito indolentes — tão preguiçosos que o trabalho de meia dúzia não valia o de um negro escravo.

Os desenhos das quatro cabeças de botocudos que o Príncipe de Neuwied inseriu no Atlas das "Viagens", Hartt considerou de valor menor, por não terem sido esboçados do natural. Ele reproduziu, em três desenhos, tomados de frente, de perfil e de cima, o crânio de um índio botocudo de São Mateus, que enviou ao Museu de Zoologia Comparada. KUPARACK ou A ONÇA, de idade um tanto avançada, morrera de doença, na fazenda, e fôra sepultado num local onde a enxurrada desenterrou o corpo que os seus parentes deixaram apodrecer no pântano. Um índio civilizado recolheu o crânio para o cientista. Colocado sobre uma mesa, serviu de brincadeira alegre a outros índios, os quais metiam os dedos nas cavidades orbiculares. Hartt não entrou em cogitações sobre a razão do nome do índio. Julgamos curioso recordar as pesquisas de um investigador do Museu Paulista, Hermann von Ihering, que em 1910 concluiu, nos seus estudos d'OS BOTOCUDOS DO RIO DOCE, que os índios, após enterrarem um morto, acendiam uma fogueira por cima da sepultura, na superstição de que as almas dos mortos, que não eram enterrados ou  queimados, se transformavam em animais, particularmente em onças. Interessado em melhor estudo antropológico, Hartt enviou o crânio ao Prof. Jeffries Wyamn, da Universidade de Cambridge, Massachusetts.

Em contato com um soldado índio botocudo, muito informado a respeito da sua língua e que também falava o português, Hartt conseguiu, em São Mateus, anotar um vocabulário, usando um alfabeto fonético feito por ele próprio e teve a impressão de "representar muito aproximadamente a verdadeira pronúncia das palavras", vocabulário que considerou muito extenso para transcrever e, ao que presumimos, permanece inédito. Ele contou que, na fazenda, em São Mateus, havia uma índia jovem, mãe de duas crianças: um menino de poucos anos, mirrado, com vício de comer terra, e uma criança nova que a mãe queria vender-lhe por qualquer dinheiro. Tendo morrido este anjinho, foi enterrado pela própria mãe, no chão do rancho, onde os índios residiam. A mulher não se perturbou com a ocorrência infausta: saiu para o trabalho de costume, mas resolveu a não vender o outro filho.

Onde haveria maior ausência de humanidade: na mãe estúpida e aflita pela miséria, tentando vender o filho, por não poder sustentá-lo, ou nos fazendeiros que tinham o hábito de comprar as crianças índias, para as conservarem como escravos?!

É considerável a bibliografia de Hartt, referente ao nosso país. Em 1869, ele divulgou, em inglês, um resumo "Sobre os Botocudos do Brasil", o qual deverá conter, por certo, informações de grande interesse para o Espírito Santo. Dentre os cargos de importância que ocupou, entre nós, merece destaque sua nomeação, em maio de 1875, para diretor da "Comissão Geológica do Império do Brasil", cuja extinção, dois anos depois, sob o pretexto de economia, foi para ele causa de muito desgosto e há quem afirme que esse golpe o levou mais depressa à morte, por congestão cerebral, ocorrida em 18 de março de 1878, no Rio de Janeiro, onde foi sepultado.

 

Fonte: Viajantes Estrangeiros no Espírito Santo, 1971
Autor: Levy Rocha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2016

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