Sobre os Escombros da Misericórdia: A Assembleia Legislativa
Entre as mais antigas instituições fundadas no Brasil, no século XVI, está a Confraria da Misericórdia do Espírito Santo. Ao lado da igreja de Nossa Senhora do Rosário e do Convento da Penha, a Irmandade da Misericórdia, foi a princípio, instalada em Vila Velha.
Segundo o historiador Basílio de Carvalho Daemon, sua transferência para Vitória data de 1º de junho de 1605, quando da fundação do Hospital de Caridade, anexo à igreja da Misericórdia, no antigo largo da Caridade. Nessa mesma época, foi-lhe outorgada por Felipe II os mesmos privilégios concedidos à confraria homônima de Lisboa.
A Irmandade da Misericórdia tornou-se, por excelência, a instituição de assistência da capitania, recolhendo os enfermos pobres, acompanhando os réus sem defesa aos tribunais, entre inúmeras outras obras meritórias que realizou. Tanto que alguns de seus benfeitores, em reconhecimento aos serviços prestados, ou talvez na esperança de comprar uma entrada nos céus, legaram-lhe fortunas consideráveis, em terras, prédios e, até mesmo, sacos de moedas de ouro e prata.
A transferência desse hospital para a então fazenda do Campinho se deu por iniciativa do governador Rubim, 1812-1819, por doação de sua proprietária Maria de Oliveira Sutil, cega de nascença.
No governo de Jerônimo Monteiro, 1908-1912, foi o prédio totalmente reconstruído por André Carloni, e acrescentado de novos pavilhões. É o que se conserva ainda hoje, embora bastante descaracterizados, sobretudo em sua fachada.
Quanto à igreja da Irmandade da Misericórdia, localizada no largo do Colégio (uma das denominações do logradouro), foi transferida ao Estado, em 27 de abril de 1907, pela quantia de cinquenta contos de réis.
Nessa ocasião, a antiga igreja da Misericórdia estava cercada de vetustos e históricos casarões, sobretudo os que tinham lugar na então rua da Assembleia (atual Moniz Freire), que era antigo caminho para o, hoje extinto, largo da capela Santa Luzia, ainda todo calçado em pedras pé-de-mo-leque. Ali funcionava a Assembleia Legislativa Provincial, a Maçonaria, desde 1872, e, a partir de 1913, o Ginásio São Vicente, dos irmãos Barbosa Leão. Personalidades, as mais destacadas, residiram nessa artéria, inclusive o presidente Moniz Freire (1900-1904), seu patrono. No sobrado de nº 5 confinou-se por algum tempo o Padre. Feijó, um dos revoltosos vencidos por Caxias na tomada de Sorocaba, por ocasião da revolta de 1842.
Do outro lado do largo (também conhecido como largo Afonso Brás — atual Praça João Clímaco), o antigo Colégio dos Jesuítas sofria sua mais intensa descaracterização, por iniciativa do presidente Monteiro, o que deu ao Palácio Anchieta sua configuração atual. No seu entorno, porém, promoveu obras importantes e necessárias, embelezando-o e tornando-o mais agradável.
Quanto à Assembleia, funcionava ainda, nessa época, na rua do mesmo nome, onde hoje se localiza o Palácio da Justiça. Um sólido e amplo edifício demolido em 1964, infelizmente.
Compreendia no pavimento térreo arquivo e secretaria. E no andar superior um só salão, dividido, por meio de balaustrada de madeira, em plenário e galerias. Jerônimo Monteiro considerava-o acanhado para aqueles dias, sem possibilidade de abrigar satisfatoriamente a atividade legislativa; requerendo estas salas de comissões, gabinetes de presidente e secretário, sala de espera etc. Por isso mandou destruir totalmente a centenária igreja da Misericórdia, que fora desapropriada pelo seu antecessor, mandando construir sobre seu terreno o novo Congresso Legislativo Estadual. Este foi, ao lado da descaracterização do antigo Colégio dos Jesuítas, de Vitória, um dos maiores sacrilégios cometidos contra o patrimônio histórico-arquitetônico do Espírito Santo.
Nesta época, destacava-se, em Vitória, um jovem autodidata italiano, de 25 anos de idade, de nome André Carloni. Este jovem terminou por se tornar uma das principais figuras nos grandes empreendimentos do quatriênio 1908-1912 e daí por diante. Entre inúmeros empreendimentos, além da Santa Casa de Misericórdia, Carloni reformou a Escola Normal Pedro II, construiu a via férrea dos bondes de Paul, a fábrica Sílico-Calcáreo, a fábrica de bombons, escadarias, alargou ruas e, naturalmente, com graça e beleza, erigiu a Assembleia Legislativa, como que para resgatar a cidade dos atos destrutivos do governo Monteiro, sobre o chão onde se assentava a igreja da Misericórdia. Jerônimo Monteiro encomendou, também, todo o mobiliário do palácio legislativo, importando, talvez da Europa, algumas peças.
Hoje a Assembleia Legislativa já está novamente lutando contra a falta de espaço. É pensamento de alguns de seus administradores a construção de um novo prédio. No entanto, muito perderá a tradição da cidade alta com o deslocamento deste poder para outro local. O prédio é tombado pelo Conselho Estadual de Cultura como patrimônio histórico e, é óbvio, não corre risco de mutilação. Mas, a melhor maneira de sua conservação é a continuidade do uso para qual foi destinado.
A expansão da Assembleia, de que se cogita, portanto, bem poderia continuar ocorrendo para o prédio anexo, o denominado "Edifício das Fundações". Este próprio, acreditamos, poderia até mesmo comportar um novo salão plenário. Quanto aos demais órgãos que ali se encontram seriam transferidos para outros locais, sem prejuízo da administração pública. Destarte, guarda-se-ia a tradição dos três poderes na cidade alta, conservando o histórico edifício, suas poucas mas valiosas peças artísticas, como as telas de Levino Fanzeres e Parreiras, e, sobretudo, o formidável acervo documental que lá, está, representado por leis, anais, relatórios, muitos desses documentos datado do inicio do século XIX e que são peças importantes da memória capixaba.
A Tribuna Vitória (ES), 25 de agosto de 1987
Fonte: Notícias do Espírito Santo, Livraria Editora Catedra, Rio de Janeiro - 1989
Autor: Gabriel Bittencourt
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2020
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