Um Santo e um Santuário – Por Serafim Derenzi
Dos nomes-legenda, que marcaram as páginas da história do Espírito Santo, dois se perpetuaram para a eternidade: José de Anchieta e Pedro Palácios. Compatriotas (1) e contemporâneos, o destino os uniu na mesma devoção piedosa que o povo capixaba lhes tributa cada vez mais. O primeiro, moço, virtuoso, letrado, pertenceu àquela plêiade de caminhantes predestinados, que desbravaram matas, conquistaram tribos, lançaram fundamentos da civilização cristã em dezenas de regiões brasileiras.
O segundo, humilde de letras e rico de devoção, apostolou rezando, rezando sempre à Virgem Maria e pedindo esmolas para construir-lhe um templo.
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Pedro Palácios (2) nasceu na província de Salamanca, em Medina do Rio Seco, na Espanha. Animado de espírito religioso tornou o hábito de São Francisco, em São José de Castela, transferindo-se depois para Arrabida em Portugal. No hospital de Lisboa exercitou-se em amar o próximo. Naquela época, o Brasil era o El-Dourado para sonhadores de fortuna e convite sedutor dos que ansiavam a Vida Eterna com o pastoreio do gentio. Em navio português, Frei Palácios embarcou e na Bahia, vago de franciscanos, se fez coadjutor dos jesuítas sem mudar de hábito. Ignora-se quanto tempo esteve em Salvador. Anchieta, na Informação, não menciona datas. Em 1558, desembarcara em Vila Velha, no Espírito Santo, e desgarra-se de seus companheiros de viagem. (3) Dias depois encontrá-lo-ão numa cabana tosca, ao pé do penhasco que encima o monte, a cavaleiro da Vila, rezando. Era um asceta, um místico contemplativo, que, na beleza multicor da montanha, sentia mais acesa a chama da santidade. Chegou “proveto em idade e simples Irmão leigo, e leigo morreu doze anos depois". (4)Em tão curto prazo construiu a mais duradoura obra de arquitetura física e moral do Brasil colônia.
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Trouxe Frei Palácios um painel de Nossa Senhora e o desejo de construir-lhe uma capela. Ao aportar em Vila Velha deparou com a magnífica paisagem do morro que lhe serve de encosto. Na assentado do monte, surgindo da floresta, um penhasco lhe remata a cumeada e sobre ela, vicejavam então duas palmeiras. Reconheceu o franciscano devoto, o local imaginado para glorificar sua protetora celeste. Lá, seus companheiros de viagens e os moradores da vila o encontraram, assustados com seu sumiço. E não houve demovê-lo sem que lhes prometessem ajudá-lo na tarefa que pretendia. Construíram a capelinha no campinho, minúscula, onde o frade colocou o painel precioso e a imagem de S. Francisco, fundador de sua ordem. Esmolava, ensinava catecismo às crianças, catequizava os índios da redondeza, edificando com seu exemplo uma sólida e piedosa devoção à N. S. das Palmeiras, invocação que deu, de início, diante de preferência da Senhora, do local de sua morada.
Esta é a tradição que a história recolheu através dos cronistas coevos, que transmitiram e registraram a chegada do franciscano e o início do Convento da Penha, hoje basílica e monumento nacional.
Mas, eis a legenda popular, bela, cheia de tessitura poética e rica de imaginação. Frei Palácios, na sua vida de asceta, morava na capelinha de S. Francisco. Certa manhã acordou e não viu a imagem veneranda da Virgem. Desolado, procurou por toda a parte, desceu a montanha, indagou dos amigos e, instantes depois, já era o povo aflito que se alvoroçava na busca. Não fora roubada. Ninguém se atreveria ao sacrilégio. Depois de tantas diligências, encontraram o painel em meio às palmeiras solitárias do penhasco. Trouxeram-no com júbilo para a capelinha humilde de S. Francisco.
O desaparecimento do quadro repetiu-se dias depois e foi novamente achado a dominar nas alturas da penedia.
Frei Palácios não era impostor. Compreenderam todos que N. Senhora, milagrosamente, indicava o cume da montanha para sua moradia.
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Depois que o ilustrado e saudoso Frei Basílio Rower, historiador de primeira plana, publicou as documentações e belíssimas "Páginas de História Franciscana no Brasil", creio ser inútil, a quem não puder aduzir novos documentos, historiar a origem e a construção do Convento da Penha.
Erudito, prudente na análise dos fatos, sincero na interpretação dos textos de seus maiores, Frei Rower reconstrói a seqüência humana da vida e obra de Pedro Palácios com o cromatismo da época.
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O testemunho da vida ascética, simples e bondosa, do frade está fartamente grafado pelos jesuítas, que lhes foram contemporâneos: Brás Afonso, Nóbrega e Anchieta, não poucas vezes, a ele se referem com respeito e admiração. O povo do Espírito Santo, notadamente o de Vila Velha, guarda, sem deturpar-lhe, a beleza mística de homem voltado para o bem. E os poetas cantam-lhe as virtudes e os devotos lhe pedem as graças do céu...
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A capelinha de S. Francisco tornou-se pequena demais para obrigar os devotos da santa milagrosa de Frei Palácios. Diligenciou-se a construção da ermida no topo da montanha. As esmolas foram recolhidas em dinheiro, dádivas e prestação de serviço. Melchior de Azevedo, sobrinho de Belchior, proprietário rico e em cuja casa não poucas vezes se acolheu o franciscano esmoler, (5) foi provavelmente o maior contribuinte. André Gomes e seus dois irmãos, Amador e Brás, testemunhas em 1616, no processo de beatificação de Frei Palácios, o acompanharam, a esmolar e a trabalhar na construção da capela da Penha. (6) É provável que a parte do santuário, propriamente dito, tenha sido edificada por volta de 1558 a 1559, logo depois da capelinha de S. Francisco. Assim escreve Jaboatão, assim confirmam os assentamentos franciscanos. E não há probabilidade de que os acréscimos à ermida tenham sido feitos antes de 1650. (7)
Palácios foi não somente um doutrinador, mas também catequista. Percorria os aldeamentos, demorando-se com os índios conforme testemunho do ven. José de Anchieta, que o chamou, "varão evangélico, que viveu e morreu santamente".
Não foi só o painel a óleo, cuja autoria se quis atribuir a Ticiano, que Frei Palácios doou à ermida da Penha. A imagem belíssima do altar-mór foi encomendada por ele, em Portugal, e é a mesma que hoje se venera no Convento.
Em 2 de maio de 1570, pela manhã, quarta feira de Pascoela, morreu o místico velhinho franciscano, dois dias depois da festa, que celebrara à Virgem da Penha. (8) A notícia foi levada à Vila pelo negrinho que Belchior de Azevedo lhe dera, quando, a idade não mais lhe permitia andar sozinho. As testemunhas do processo, instaurado em 1616, afirmaram que naquela manhã os sinos repicaram festivos. Pode-se desmentir um povo?
Carlos de Laet fez-lhe o panegírico, estudando-lhe as virtudes, em uma conferência pronunciada em 22 de maio de 1903. (9)
NOTAS
(1) Padre Anchieta era canarinho da Ilha de Tenerife, pertencente a Espanha. José da Frota Gentil S. J. – “Vida do Ven. José de Anchieta”. Deve-se pronunciar Anxieta.
(2) Frei Basílio Rower. O. F. M. “Página da História Franciscana no Brasil”.
(3) Carvalho Daemon – Ob. Cit.
(4) Rower – na obra citada corrige a data do falecimento de Palácios de 1575 para 1570.
(5) Frei Rower – Ob. cit.
(6) Jaboatão – “Apud.” Frei Rower.
(7) Rower – Ob. cit.
(8) Rower. Idem.
(9) “O Frade Estrangeiro e Outros Escritos”. Organização de Múcio Leão
Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2017
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