Velha glosa sobre a Penha e sua polêmica

Nunca aceitei aquela apressada afirmação de que o poeta capixaba José Gonçalves Fraga - falecido em 1855 - fosse o autor da quadra:
Teu nome escrevi na areia,
Ao pé do vizinho mar;
As mesmas ondas quiseram
Teu nome virem beijar.
Trova que lhe serviu de mote à sua conhecida glosa, publicada no Jardim poético de José Marcelino Pereira de Vasconcelos [Vitória, 1856-58], de onde Afonso Cláudio retirou a versão que consta às páginas 109-10 de sua História da literatura espírito-santense [Porto, 1912], e divulgada, anteriormente, noutra variante, à página 4 do Correio da Vitória, edição de 5 de setembro de 1855.
A trovinha tem sabor popular e transpira evidente lirismo amoroso.
A nosso ver, Gonçalves Fraga, segundo o gosto da época, aproveitou a quadra popular (talvez ligeiramente adaptada) e sobre ela decalcou e desenvolveu a sua glosa, que ressuma, como se vai ver, exaltado lirismo religioso. Se, realmente, também de sua autoria a quadra-mote, por certo o vate preferiria empregar, no último verso, outro verbo, em vez de beijar, que não diz bem com a intenção religiosa da glosa. A substituição, por exemplo, de virem beijar por vir adorar não quebraria a medida do verso septissilábico, e melhor atenderia ao tema da poesia mística.
Esta, a glosa do velho vate capixaba que - segundo a opinião de Afonso Cláudio - era "homem de alguma cultura, dispondo de habilidade para apreender alheios pensamentos", mas, na poesia, "simples amador; poeta, nunca".
MOTE
Teu nome escrevi n'areia
Ao pé do vizinho mar;
As mesmas ondas quiseram
Teu nome virem beijar.
GLOSA
Com devoção, com vanglória,
Fui te ver, ó Penha, um dia,
Pois teus milagres ouvia
Contar-se com pasmo e glória;
Teu templo vi, que a história
Relata com Epopéia;
De Vila Velha (ou Aldeia),
Saltei na praia afamada;
E antes d'ir pela calçada
Teu nome escrevi n'areia.
Que maravilha excelente!
Justos Céus! Eis vem do Prado,
Eis surge do mar salgado
Sacra Turma, alta e luzente,
Que adorar vinha contente
Teu sacro Nome sem par,
Nome excelso e singular,
Teu Santo Nome bendito
Qu'eu devoto tinha escrito
Ao pé do vizinho mar.
Subo ao cume, sem demora,
Da Rocha, onde está teu Templo;
Nele, ó Virgem, te contemplo
Tal qual como os Céus te adora. [sic]
Vejo, enfim, como Senhora
De tudo os Céus te fizeram,
Pois té letras que escreveram
As minhas mãos vis, indinas,
Qu’ adorar como divinas
As mesmas ondas quiseram.
À vista das Maravilhas
Que tu, que nos astros brilhas,
Virgem, Mãe, Esposa amada,
De Deus, dos Céus adorada,
Grandes coisas tens que obrar;
Por isso vejo te dar
As Nações suas riquezas,
E pelas suas grandezas,
Teu nome virem beijar.
Divulgo aqui a versão publicada no Correio da Vitória. Difere ela, em algumas partes, da que transcreveu Afonso Cláudio. Tais diferenças ocorrem nos seguintes pontos principais: o quarto verso do mote: "Teu nome à praia beijar"; primeira décima, segundo verso: "Cantar com fama notória"; sexto verso: "Elevou à epopéia"; oitavo verso: "Saltei na praia aljofrada"; nono verso: "E antes de ir ter à calçada"; segunda décima, primeiro verso: "Que maravilha esplendente"; terceiro verso: "Eis surge do mar irado"; quarto verso: "Sacra turb'alta, luzente"; oitavo verso: "Três vezes nome bendito"; terceira décima, quarto verso: "Tal qual o céu te adora"; nono verso: "Adorar como divinas"; quarta décima, oitavo verso: "A terra suas grandezas"; nono verso: "E do mar suas riquezas"; décimo verso: "Teu nome à praia beijar". 0 sabor popular da quadra-mote pode-se perceber melhor se a confrontarmos com as seguintes trovas portuguesas. Dos Cantares do Minho, de Fernando de Castro Pires de Lima [Porto, 1942, segundo volume, trovas n. 1.380 e 1.381]:
Escrevi na branca areia
O retrato do meu bem;
Tornei-o a riscar fora,
Que me não estava bem.
Escrevi teu lindo nome
Sobre areia fugidia;
Veio o vento, apagou
As cinco letras - Maria.
E, melhor ainda, nestas duas outras [n. 1.898 e 1.899] do Cancioneiro popular do Baixo Alentejo, de Manoel Joaquim Delgado [Lisboa, 1955, volume I, p. 190]:
Escrevi-te, lindo amor,
Na branca areia do mar.
Vieram as tristes ondas
Com teu nome navegar.
Escrevi teu lindo nome
Na branca areia do mar.
Vieram as tristes ondas
O teu nome apagar.
Aqui no Brasil, até agora, só posso indicar esta variante literária, referida no livro do Prof. Sales Cunha, Aspectos do folclore de Alagoas [Rio, 1956, p. 166] - começo de uma canção bonita, então corrente em Maceió":
Quantas vezes escrevi o teu nome,
Na alva areia, nas ribas do mar.
E as vagas talvez por ciúme
Vinham presto o teu nome apagar.
Como se vê, o tema lírico da quadra-mote, atribuída ao poeta capixaba José Gonçalves Fraga, é velho e corrente na poesia popular, tudo indicando não ser a referida quadra de sua autoria. Suas seriam apenas as décimas da glosa, e nada mais.
Fonte: História Popular do Convento da Penha, 2008
Autor: Guilherme Santos Neves
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2016
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