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La última Mirada - Por José Paulino Alves Junior

Vista da cela de Anchieta para o Rio Benevente

 

Aos que passam a Linha esconde-se a estrela do Norte: mas aos que estão em passamento, que é a linha entre o tempo e a eternidade, não se esconde a Virgem, antes se põe mais perto. Só invocado o seu nome, naquela hora, defende, esforça e assegura. E, para o invocarmos sempre com gosto, parece derramou nele Deus quantos favos enriquecem o monte Hibla, e quantas flores se riram nos jardins de Alcino. (Padre Manoel Bernardes, Nova Floresta).

 

 

 

Sábado, ao entardecer, o Padre Anchieta teve vontade de espairecer os olhos no espetáculo majestoso da natureza.

O COLÉGIO DOS JESUÍTAS, em Reretiba, naquela época, estava ligado à igreja por vasto alpendre. A cela de Anchieta voltava-se para o poente. Havia uma janela larga, rasgada na parede espessa, junto da qual ABARÉ ficava, longas horas, engolfado nas suas leituras, até que o sol, escondendo-se atrás dos montes, dava lugar às trevas da noite, mal iluminada das candeias de cera virgem, ou do óleo grosso de tucum.

Naquela tarde, Anchieta não quis ficar junto à janela, como era costume. Quis descer, para amplitude de visão. Mas fora-lhe penosa a descida ao pátio, defronte ao cemitério, por onde tinha de dar volta. Estava muito combalido da doença...

Teimou em descer mesmo assim, e desceu, abordando-se, esforçadamente, ao velho cajado de araticum que trouxera da Bahia.

Muito lidaram os irmãos de fé por dissuadi-lo; «mas fora lá possível aquilo? Dois dias atrás, sofrera aquele vágado, quando estivera na cozinha a preparar o caldo para um dos doentes...»

 — «Não vos dê cuidados a minha condição». — disse o taumaturgo, discordando com brandura, num sorriso de simpatia e bondade. «Não vos dê cuidados... Preciso o mar, o céu as montanhas, o rio...»

Andou mais um pouco. Deteve-se. E, voltando-se para os outros padres, explicou num presságio triste:

 — «La última mirada...»

 E foi andando, devagarzinho... O vento da tarde fustigava-lhe a samarra de pano grosseiro, já muito usada e poída. Perto, numa laranjeira, que o padre tinha plantado, — e já carregadinha de frutos, — um sabiá da praia — musicalizava o ar, escondido nas ramagens verdoengas.

 — «PIAGA vai ficar aí muito tempo? » — perguntou-lhe uma índia velha.

 O padre não respondeu. Só fez menear a cabeça, negativamente.

De pé, no cimo da ladeira, José de Anchieta, embebido nas suas meditações, pôs-se a contemplar, pela última vez, aquele cenário magnífico.

No braseiro do ocaso, empurpurando os visos da SERRA DO PONGAL, o sol morria... E, jorrando clarões de rubis e topázios, de lado a lado, na fímbria do horizonte e com irradiações para o alto, o disco astral ia, lento e lento, desaparecendo numa deslumbrante apoteose de fulgurações.

O mar, tranquilo, era, naquele instante, imenso lago que refletia, nas águas, vastíssima extensão do céu, ruborizado de ouro etéreo.

E o Rio Benavente, cuja caudal a viração encrespava de manso, adornou-se, também, naquela irradiação maravilhosa, todo cintilante de reflexos carmesins.

— «Quarenta e quatro anos de missão no Brasil! » —disse o padre, resignado de si para consigo.

E começou a recordar... Vieram-lhe à imaginação os episódios do passado. Naquele longo transcurso, revia como num sonho, a PIRATININ de João Ramalho, as aulas de latim em São Vicente... Lembrava-se de tudo: de como aprendera a língua dos íncolas, mercê de Deus, em tão breve prazo — seis meses, apenas! — chegando a compor aquela gramática, de que se serviam, tão vantajosamente, os outros padres, na obra de catequese... Lembraram-lhe as viagens à Bahia, o naufrágio perto de Abrolhos, a fundação do Rio de Janeiro, as lutas contra os huguenotes... Não se lhe delira da memória a estada entre os TAMOIOS, refém voluntário. E os longos percursos nas matas inçadas de feras e gentilidade traiçoeira... E as viagens penosas por terras abrolhadas de espinhos, ou por cordilheiras eriçadas de contrafortes, — pés tão mal protegidos nas sandálias de couro cru; cabeça escaldante de ideal, tão maltratada no rigor das soalheiras... E as loas marianas. E os versos, na PRAIA DE IPEROIG... Tudo! Tudo lhe ocorria, tudo lhe afluía à mente abrasada, às vezes, sem concatenação cronológica, numa associação de ideias tumultuárias, sucedendo-se a flux e atropeladamente, ou emergindo do passado, à discrição dos fatores evocativos.

E, logo depois, considerando a terra e a gente de Reretiba, pôs-se a recordar do tempo em que ali chegara, em 1565. Tanto tempo! O corpo, tão alquebrado, pedia o sono da terra... Já estava terminada a obra. E por que não? Firme, sobranceira ao rio, ali estava a Igreja que edificara com a ajuda dos índios, e dedicara à ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA, sua protetora. E, crescendo à sombra da cruz, elevado à voz dos sinos, cuja sonoridade a asa do vento espalhava no coração das brenhas; e, expandindo-se à orla da praia, na multiplicidade das cabanas colmadas de sapé, para, ao ouvir o eterno ululo do mar, auferir, por sua gente, o proveito dessa força fluida e magnífica, donde haveriam de promanar, sempre, os recursos primitivos de vida, — RERETIBA afirmar-se-ia aos poucos, na glorificação dos seus mais belos dias. E viriam as naus de velas pandas... E o Rio Benavente, sereno, no seu perfil de equilíbrio, haveria de constituir-se a via natural e fácil de penetração no recesso da terra violada... E fomentar-se-ia o comércio... No suado labor dos campos, onde as tribos, ainda nômadas, se juntariam, um dia, incorporadas à civilização com os elementos alienígenas, floresceriam nesses... E a indústria viria, também. Núcleo dinâmico de vida; centro irradiador de trabalho e afirmações gloriosas; germinal, donde emanaria a fé que exalta e que redime; árvore da Cristandade, que ele plantara, ductilizado as almas com o poder da sua bondade evangélica, para dar sombra e refrigério, sossego e paz aos corações aflitos e sequiosos de luz, — RERETIBA haveria de ser grande um dia . . .

Assim sonhava PAIÊ-GUASSU, olhando o céu... Sumira-se o sol atrás dos montes, ainda coroados de esplendores. O mar, cujas perspectivas de infinito, tantas vezes deslumbraram as retinas ao taumaturgo, na apoteose de luz das manhãs gloriosas, — esse mar, já agora, cantava, lá em baixo, na tristeza daquele entardecer, a nênia da sua saudade eterna. E o rio parecia carpir, baixinho, a dor da separação. E as macaúbas flabelavam as palmas, num surdinar de chôro abafado e longo...

Anchieta voltou à cela.

 

Acudiu-lhe uma febre intensa. E não mais se pôde erguer.

Estava cumprida, na terra, aquela destinação de bondade.

No dia seguinte, domingo, nove de junho de 1597, às 9 horas da noite, entrava em agonia.

Cinco religiosos, em derredor do leito, rezavam compungidamente.

Exauriam-se lhe as forças, cada vez mais. Com voz débil, — tão débil como o balbucio de prece, ou murmúrio longínquo e enfraquecido de outra vida, — pediu que lhe ministrassem o Santo Viático e a Extrema Unção.

Pouco depois, o Padre João Fernandes entrava na cela onde se encontrava Anchieta, entanguido, num catre tosco. Vinha acolitado dum catecúmeno.

O sacerdote paramentou-se. Grave e sereno, na dignidade do ato, tomou a porção ázima, disse pausadamente algumas palavras em latim. Ofertada a Hóstia, começou a ministrar ao moribundo o sacramento da Extrema-unção, segundo determina o Ritual da Igreja.

Já agora estava indutado da estola violácea: PAX HUIC DOMUI.

Deu ao doente a Cruz a beijar; fez as aspersões de água benta, rezando as palavras da antófona: ASPERGES ME, DOMINE....

E obsecrou, naquelas comovedoras palavras da liturgia católico-romana, a misericórdia divina. E ungiu as pálpebras edemaciadas do moribundo... PER ISTAM SANCTA UNCTIONEM... E os ouvidos; e o nariz; e a boca, de lábios compressos; e as mãos, de unhas já cianosadas; e, finalmente, os pés: INDULGEAT TIBI DOMINUS QUIDQUID PER GRESSUM DELTNQUISTI...

E as últimas palavras — PER CHRISTUM DOMI-NUM NOSTRUM — ressoaram numa vibração dolente.

Era o fim.

Imediatamente, sobreveio-lhe um transe que parecia o da morte. Teve mais um estremecimento. Cerrou as pálpebras... Dir-se-ia que estava morto.

Mas, não! Abriu então os olhos, — não mais enevoados de tristeza, — mas animados dum fulgor magnífico.

Algo de estranho se passava.

Recobrando-se de alento, o Padre soergueu-se. Sentou-se no leito, e começou a sorrir, num encantamento. Volvendo o rosto para o lado da porta, que uma claridade opalescente alumiava num halo sideral de mística beleza, enlevava-se numa contemplação misteriosa. Como que embevecido num êxtase, Anchieta exclamou então:

— «Ouçam, Padres! Ouçam! »

Os Padres puseram-se a ouvir. E quase todos ouviram. Era música divina, transcendentalizada no espaço. Canto modulado no céu, maviosíssimo e enternecedor; coro de vozes supernalmente belas que harpas acompanhavam como que tangidas por mãos de anjo, vinha até eles, — de ouvidos atentos na surpresa do milagre, — como bênção estelar, aquela harmonia poderosa e suave.

Lenta, lentamente, foram os acordes sumindo, em surdina...

E, então, Anchieta repetiu as duas estrofes do poema que escrevera, havia tantos anos.

"De novo, Senhora, recebe minha alma, O Ave Sagrada de eterna harmonia!"

E encostou-se ao cabeçal. Fechou os olhos, sorrindo, numa alegria de criança. E entregou a alma a Deus.

Os que lhe assistiram ao passamento, ainda ouviram estas últimas palavras: «Maria! Maria Santíssima! ».

O Padre João Fernandes sentia um nó na garganta. Tinha uma vontade doida de chorar. Chegou-se então à janela. E notou: a terra estava imersa na escuridão. Mas, o céu estava enfeitado de estrelas, de muitas estrelas, num esplendor de constelação como nunca se vira. A terra estava de luto. Mas, havia festa no céu.

(Do livro "Aconteceu, sob este céu. ..")

 

JOSÉ PAULINO ALVES JUNIOR

 

Nascido em Porciúncula (Estado do Rio) a 23-8-1895. Filho de José Paulino Alves e de Tereza Carolina Pereira Alves (ambos de Minas Gerais). Primeiros estudos no Colégio Maria Lima (Niterói). Secundários no Ginásio São Vicente de Paulo de Muriaé (Minas). Curso superior na Faculdade de Direito do Estado do Rio, onde se formou em 1931. No Espírito Santo fez carreira no magistério e na magistratura. Fundador do Ginásio "Barão de Macaúbas" (Guaçui, Espirito Santo). Catedrático, por concurso, da cadeira de Português e Literatura da Escola Normal Pedro II (Vitória). Tem lecionado em vários Estabelecimentos de Ensino: Português, Latim, Francês, História do Brasil e História Geral, Sociologia, Esperanto. Foi Diretor e Professor do Instituto Afrânio Peixoto (Miracema, Estado do Rio de Janeiro). Juiz de Direito no Espirito Santo desde 1944. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado em 1958. Colaborou em vários jornais e revistas do País, entre outros: "Vida Capichaba", “Canaã.", "A Tribuna", "A Gazeta", "Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo". Pertence à Academia Espírito-santense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico do Espirito Santo, à Associação Espírito-santense de Imprensa, à Associação de Juristas do Estado.

Publicou: "Do Beijo" — conferência — (Vitória, 1925), "Da Preposição" (Vitória, 1932), "Nugas de Gramática" (Vitória, 1932), "O Caudilho Negro" (Vitória, 1938), "A questão do S e do Z" (Vitória, 1948), "Um Instante de Boa Linguagem" (Vitória,   ), "As vozes dos bronzes" — conferência — (Vitória, 1960), "Moniz Freire" (1962).

A PUBLICAR: "O Direito Através do Latim", "Píncaros Iluminados", "A Estética do Gerúndio" etc.

 

Fonte: Torta Capixaba (Ensaios, Crônicas, Poesias...) 1962 - Editora Âncora S.A. Vitória - ES
Autor: José Paulino Alves Junior
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2022

 

 

 

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