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Memória da Ponte de Camburi

Ponte da Passagem, primeira ponte que dava acesso à Camburi

Maria das Graças Silva Neves, nasceu em Pancas, em 1949. Licenciada em música. Graduada em Piano. Bacharel em Canto. Poeta. Publicou: Graça, que graça a vida! , 1990; Variações sobre o mesmo tempo, 1996: Coral dos ventos, 1996; Trevo de quatro folhas, 1999; Poemar, 1999; Viveiro do silêncio, 2001.

Num domingo de sol quente, com muito mormaço e ameaça de chuva fui surpreendida pela necessidade de andar sem rumo, de ver a praia. As minhas pegadas marcavam profundamente as areias à beira mar na Praia de Camburi. Um silêncio implacável, em frações de segundos, invadiu meu EU interior, que pensava ser intocável e quase intransponível. Aflorou no fundo de mim mesma, a memória de um tempo que eu pensava esquecido.

Um passeio no passado me transportou para a década de 60. Reminiscências de um período onde havia uma praia linda, sem ponte, sem asfalto e sem poluição me chegavam como chama ardente na memória.

O acesso chegada à praia de Camburi era via chão, estrada de barro, terrivelmente longe, pois para chegar à praia, a camionete Chevrolet de meu pai, apinhada de meninos na carroceria, percorria kms dando a volta pela precária "Ponte da Passagem".

A praia sempre deserta, o mar límpido, com suas ondas mansas, conchas e tatuís nas areias e nos terrenos vegetação natural. A vegetação rasteira descia areia abaixo bem próxima ao mar, as pequenas árvores cheias de coquinhos silvestres envolviam-se aos pés da garotada, e as pitangueiras... ah! as pitangueiras com a sua cor do alaranjado ao vermelho exalava um perfume cítrico e apetitoso.

Senti no momento o passado, com gosto de juventude.

O domingo era dia de viagem, mas também dia de pic-nic na praia ... um dia de festa para a meninada (11 filhos e mais primos e primas que moravam na casa de meu pai).

Uma família grande e cheia de alegria.

A distância para chegar até a praia era de ansiedade e expectativa. O corre-corre da criançada dispersa em brincadeiras na água do mar ou na areia era motivo de competição; para ver quem chegava primeiro para catar coquinho, comer pitangas e procurar mexilhões na areia.

Tomar caldo nas águas de Camburi era normal com tantas ondas que se formavam seguidamente uma após a outra.

Tudo era saudável, todos por um, um por todos.

Os mais velhos não tiravam os olhos da garotada, vigilância cerrada, pois a turminha era do perigo.

Tudo parecia mais calmo, mais bonito e mais natureza. A chegada até à praia de Camburi era mais longe e perdia-se muito tempo, mas tinha muito mais emoção.

Eu me lembro lá de cima do Colégio onde estudava, Sacré Couer de Marie localizado no morro da Praia Formosa, numa pequena ilhota, colégio era mantido pelas freiras francesas que aqui se fixaram para contribuir com a melhoria da educação das famílias capixabas. De nossa sala de aula, eu admirava pela janela a linda praia de Camburi, uma paisagem magnífica que parecia uma pintura bem diante de nossos olhos.

O que separava a ponta formosa era apenas um canal entre as duas praias, a Praia Comprida (hoje Praia do Canto) e a de Camburi, porém o percurso era verdadeiramente longe, muito longe, em se tratando de chegar ao local.

Sem dúvida era necessária a ligação entre os dois bairros, onde de um lado a Praia do Canto que muito prosperava com suas belas casas e um comércio já se renovando com lojas modernas e do outro lado a Praia de Camburi, um bairro onde terrenos baldios eram cheios de vegetação, sem quase nenhuma construção.

Tudo ermo, no silêncio do tempo.

Um dia, surgiu o projeto da ponte de Camburi!

Era quase impossível acreditar, pois o governo estadual não tinha recursos, mas uma verba federal surge no orçamento para alento dos capixabas; então o Espírito Santo prosseguiria com o seu crescimento econômico, tendo mais uma ponte ligando os canais da ilha de Vitória.

Eu vi, vivi e vivenciei a ponte sair do papel, por um projeto do nosso vizinho, o engenheiro alemão Dr. Duenke, ( ue morava em frente à nossa casa na Rua Rio Novo, hoje Saul Navarro) na Praia do Canto.

Os comentários não paravam por toda a parte de Vitória, a vizinhança estava eufórica e também no colégio Sacré Couer onde as freiras tinham interesse na construção da ponte, pois manteriam sua residência do outro lado, no novo bairro, por ser mais calmo e tranqüilo, além de ser importante a ligação das pequenas ilhotas.

A imprensa diariamente noticiava nos jornais da cidade em manchetes de destaque:

- A ponte de ligação entre a Praia do Canto e Camburi vai começar ... tempo passava e a ponte custou a ser elevada, mas as obras continuavam até que a verba acabou e a ponte parou.

Foram mais alguns meses e meses de espera.

Não estou me referindo à terceira ponte que durante onze anos esperamos ansiosos-vivemos governo após governo, mas em agosto de 1989, a terceira ponte que liga Vitória à Vila-Velha vislumbrou uma das paisagens mais lindas do Brasil.

Volto à minha memória, e, então me lembro do dia da inauguração da Ponte de Camburi, supostamente pronta. Na reinauguração, pompas e fogos, políticos e discursos.

Passados alguns meses, fomos impedidos de passar por ela, havia um dos pilares com problema de cálculo. Recomeçaram as obras de reforço e finalmente, meses depois, eis que surge bela e pronta.

O progresso então se aproximava daquele bairro que há bem pouco tempo tão solitário, contracenava com as luzes apenas do clarão da lua; seus canteiros eram cheiros de maresia e o aroma das flores silvestres se espalhava pela vegetação nativa de beira mar.

A grande área de vegetação tida como uma fazenda começava a ser loteada e logo os investidores iniciaram a venda de lotes para construções de casas e pequenos condomínios.

Ao mesmo tempo a Companhia Vale do Rio Doce embarcava em Vitória com os seus projetos de poder econômico e comprava a chamada Ponta de Piraen, para ali construir o Porto de Tubarão ( hoje o maior do mundo como exportador de minério).

Camburi crescia e a Vale comprava vários terrenos para construir apartamentos para os seus funcionários recém chegados de Minas Gerais.

E assim, sentimos o progresso chegar.

Fizemos a nossa parte; casada em 1974, construímos em Camburi, a nossa pequena casa, de tijolos maciços, no estilo colonial.

Os meus filhos ali cresceram, brincando nas ruas sem calçamento, ruas de areia, até mesmo sem estrutura de esgoto sanitário, mas cada casa com a sua própria infra-estrutura de saneamento básico.

O que tornava muito agradável era ver a criançada crescer vivendo uma infância rodeada de amigos, com a união das famílias vizinhas. Uma vida feliz!

Alguns anos se passaram, a ponte ora instalada já exigia urgência de reparos e reestruturação para então lado a lado serem implantadas pistas de mão dupla.

Da sacada de minha casa, onde ficava a sala de música, com o piano e a biblioteca de livros de história da música, estética e óperas, eu podia sentir o mar me levar em pensamentos pelas ondas que rebentavam na borda da areia em noites de lua cheia.

A onda além de não perturbar o meu estudo de piano, embalava o sono de quem habitava nas proximidades, com o ruído agradável do mar soando na madrugada.

Tudo era calmaria, muitas vezes tinha apenas a impressão de ouvir os sussurros da brisa do mar que penetravam no silêncio da noite. As casas foram chegando, os bares se instalando e os anos foram passando.

O asfalto chegou, em forma de duas pistas e progresso acelerado. Os acidentes aumentaram e Camburi deixou de ser a praia bucólica, sem mais os terrenos cheios de coquinhos e pitangueiras que serviam para a meninada se divertir e de alimento para os pássaros.

As lembranças começaram a ser levadas aos poucos pelos ventos; quando não era o vento sul, era o noroeste que chegava furioso levando a areia em redemoinhos para o asfalto, ofuscando a visão de quem passava e perturbando o tráfico da orla da praia.

Tudo isso em revolta pela transformação da natureza promovida pelas mãos do homem... Eu continuava a caminhar na praia... sem rumo e sem prumo de encontro às minhas lembranças.

Avistei de longe a minha sacada, senti o mar iluminado pelas luzes fortes voltadas para a praia, com novas pistas, com calçadas novas para fazer Cooper, com gente chegando e saindo num vai e vem de correrias constantes.

A vista da sacada era penetrante, envolvente, capaz de me fazer voltar no tempo e viver cada emoção. Eu ainda me lembro da primeira vez que passei a pé pela ponte de Camburi.

O tempo foi passando... casas foram derrubadas e em seu lugar surgiram prédios de quatro e cinco andares. Com o tempo, a reforma política chegou ao país; o número de vereadores aumentou, dando margem à politicagem. No bairro, a troca de favores marchava desordenadamente com prédios na orla em frente ao mar atingindo de oito a doze andares. Era o começo do fim de um bairro com qualidade de vida.

Tivemos que aderir ao progresso; cedemos a nossa casa a um prédio de cinco andares e perdemos a autonomia, a praia, agora cheia de detritos vindos do porto de Tubarão e até o nome que veio a se chamar Jardim da Penha, a partir da segunda rua depois da Avenida da praia, pois até então se podia ver e contemplar o Convento da Penha.

A dor chegava bem forte, o piano amigo de todas as horas não podia mais ser ouvido há distância, onde Chopin, Mozart e Beethoven me faziam companhia até altas horas e o som propagava sem perturbar os vizinhos. Nem mais se podia ouvir o rebentar das ondas do mar com o cheiro da maresia nas noites enluaradas.

As reformas se instalaram e a cada mandato de prefeito, a perturbação do trânsito era caótica; o bairro se tornou insuportável de viver. O que chegava cada vez mais era o cheiro de pinche do asfalto e a poeira negra do minério do Tubarão.

Eu continuava a caminhar na praia em rumo à ponte de Camburi... encontrava pessoas, mas as ignorava, pois continuava presa às lembranças que pareciam vivas dentro de mim.

Na imaginação, avistei de longe a minha sacada, de onde a vista era penetrante, envolvente, capaz de me fazer voltar no tempo e viver cada emoção. Senti o mar iluminado pelas luzes fortes voltadas para a praia, com novas pistas, com calçadas novas para fazer Cooper, com gente chegando e saindo num vai e vem de correrias constantes.

Sentia-me longe do calor. O meu mundo era outro... O sonho pairava no tempo em que a ponte chegou fugindo do efeito do encanto de uma época única, tão cheia de harmonia. Sem violência e sem tortura.

Era tarde demais... A ponte de ligação trouxe evolução, distração, novos caminhos para uma juventude em busca de novos rumos.

A ponte trouxe aproximação entre os bairros, e o progresso chegou rápido demais, trouxe nova gente, e tirou a convivência das famílias que costumavam a se reunir nos fins de semana.

Efeito bomba! Políticos com suas plataformas de governo investiram nos bairros ricos e, então vieram para a bela praia e, juntos com eles o "Vital" - carnaval fora de época, com arenas montadas - "shows de verão", música alta, vozerio de gente.

O morro desceu, e nos botequins e bares a algazarra se estendia até altas horas da manhã, gente com risos e gritos sem pudor e sem limite de hora incomodando a noite de quem estava dormindo.

A era tecnológica avançando e a globalização mais perto, querendo tirar o encanto do silêncio.

Segredando pela noite, perdida no tempo, adormeci no adeus da madrugada. Sonhei muito com a ponte de Camburi que eu vi construir, mas hoje me vejo no presente com mais uma ponte ligando os bairros, mas que não é ainda suficiente.

Precisamos de duas ou mais.

Vitória não progrediu, simplesmente explodiu!

Ao acordar, a lua desapareceu na lentidão do horizonte e um sussurro longínquo trazido pelo vento misturou-se na explosão do tempo, eu fugi do meu sonho, eu senti que a viagem já tinha sido longa e a evolução contribuiu com a comoção da ilha.

Tudo chegou intempestivamente.

A saudade soou na cadência perfeita de um passado que hoje, no contraponto de um tempo único, jamais voltará.

 

Fonte: Escritos de Vitória Nº 27 Pontes,  Prefeitura Municipal de Vitória e Academia Espírito-Santense de Letras, 2010
Autora: Maria das Graças Silva Neves
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2016



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